Arquivo de Agosto de 2009

Tambor de Mina

Postado por Vanessa Rodriguesem 31 de Agosto de 2009

“Iracema, uma transa Amazônica”

Postado por Vanessa Rodriguesem 31 de Agosto de 2009

Foi também por este filme que a curiosidade de saber que Amazónia é esta se foi aguçando. Depois conheci o Jorge Bodanzky (realizador do filme) e a Márcia Bodanzky que além das descrições e das histórias sobre a Amazónia que galgaram, também com o projecto “TV Navegar Amazónia”, desafiaram-me a esquecer os vícios do olhar urbano para ver mais perto. Algo tão óbvio, mas um exercício lento e difícil. Ainda estou a processar em câmara lenta.

Este filme, “Iracema, uma transa amazónica” (o trocadilho propositado refere-se ao movimento de prostitutas, camionistas e o logro em que se tornou a estrada Transamazónica) foi rodado em 1976, em plena ditadura brasileira, a convite de uma cadeia de televisão alemã, sobre o impacto dessa “castradora” Transamazónica – Belém-Brasília: os problemas de desmatamento, grilagem de terras, prostituição infantil, exploração sexual, miséria, descaso, corrupção. Bodanzky, junto com Orlando Senna, filmou com um elenco reduzido uma espécie de “doc-ficção” – de improviso – em poucas semanas, trilhando desde Belém a estrada que rasga parte da Amazónia brasileira.

O filme só passou no circuito comercial, no Brasil, em 1981, já que na época foi censurado pelo regime, por ser contra a propaganda oficial da importância da Transamazónica. Hoje, “Iracema” é considerado um filme de culto do cinema documental. E, bem vistas as coisas: muito pouco mudou desde então.

Biopirataria

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Agosto de 2009


santarosa

Publicado no Diário de Notícias, 30 de Agosto 2009

Dona Ambrósia sabe tudo sobre as plantas medicinais do mato. Tem 99 anos. Só foi ao médico pela primeira vez há duas semanas: doía-lhe o peito.

Dona Ambrósia foi pela primeira vez ao médico há duas semanas. Mora na Ilha da Santa Rosa, em Ananindeua, cidade no estado do Pará, norte do Brasil. Sentiu uma dor no peito e estranhou.

“A minha filha achou melhor ir ao doutor ver o que era, porque na minha idade ela não quer correr o risco de esperar pelo remédio aqui do mato.”

Esta mulher de traços magros, vividos, 99 anos, conhece todas as plantas da comunidade. “Se tenho dor de estômago vou colher uma unha-de-gato ou o puxuri e preparo-as. Problemas de pulmão trato com leite de amapá. E a barba de paca é boa quando há sangue na urina.” Já a “casca de cajuí”, conta, “é boa para acabar com as úlceras”. E o chá de camembeca combate a diarreia, dores no fígado e hemorróidas.

“Mas só as pessoas mais idosas conhecem bem as plantas”, conta Gilberto Sousa da comunidade Igarapé Grande, vizinho da Ilha de Santa Rosa, lamentando que esses saberes se estão a perder na região.

“Às vezes apareciam aqui algumas pessoas interessadas em conhecer as plantas. Elas conheciam-nas bem, até melhor do que eu, e arrancavam algumas para levar. Só depois começámos a perceber que estavam a roubar os nossos remédios”, denuncia Gilberto.

Biopirataria? “Na maioria dos casos sim”, explica Filipe Bastos da secretaria de meio ambiente de Ananindeua. “Noutras situações é para pesquisa, mas a biopirataria ainda é um grande problema na Amazónia”, esclarece Gilberto Sousa.

D. Ambrósia, filha de Santa Rosa, a ilha de Bacabas

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Agosto de 2009

donambrosia

Publicado no Diário de Notícias, 30 de Agosto 2009

O som do motor do barco parece que vai estourar a qualquer momento. Ronco contínuo, ensurdecedor. É melodia de progresso em águas amazónicas. Transporte “abençoado”. Se o desligarem, só se ouve o ondular das pequenas ondas no rio Maguari, em Ananindeua, no norte do Brasil. É a terceira cidade mais populosa da Amazónia. “E uma das mais pobres”, diz Filipe Bastos, secretário do Meio Ambiente da região. Ao redor, as pequenas ilhas parecem pequenos puzzles verdes. Vêem-se redomas de igarapés, esses braços estreitos de rios da bacia amazónica, labirínticos. As raízes grossas e espessas estão secas das margens. “A maré está baixa. É a melhor hora para navegar”, comenta Gilberto Sousa, o Gil da comunidade de Igarapé Grande, em Ananindeua. E há águas de mar Atlântico que também se desviam para aqui, trazendo o camarão. Há caminhos de ribeiros, monótonos, pintados pela natureza em irmandade gémea. Gil, diz que não, ri-se, assegura que nenhum se repete. “Conheço-os desde pequeno, e sei dizer onde eles nos levam.” Aponta para um: “Aquele vai para onde eu moro, mas este barco é muito grande para passar.” É ele que vai ao leme. Pele morena, mãos enrugadas. Sabe que no próximo emaranhado de raízes tem de contornar à esquerda para chegar à ilha de Sta. Rosa, onde fica a comunidade do Cajueiro.

“Foi nestes ribeiros que se esconderam os Cabanos [no século XIX] e ainda hoje encontramos túneis com moedas antigas e louças daquele tempo”, conta. Refere-se à revolta de negros, índios e mestiços contra a elite política no Pará, por causa da pobreza que carcomia as populações ribeirinhas, depois da independência do Brasil, em 1822. “O meu bisavô era português, apaixonou-se por uma cearense, casou-se, teve onze filhos e depois nunca mais souberam dele.” Uma hora depois, saberemos que “Bacaba é um fruto maior que o Açaí”. Quem ensina é Dona Ambrósia, 99 anos, descalça. Olhos azul celeste, mãos finas, cavadas pelo tempo e que, recorrentemente, encostam à boca depois da gargalhada. “Esta casa tem mais de cem anos, já cá estava quando eu nasci. Mexi muita farinha. Mas já não tenho mais força nos braços”, recorda a quase-centenária, enquanto ajeita a lenha por baixo do forno. Hoje, só ela e a filha ainda preservam, na comunidade, a tradição de preparar a farinha de mandioca. Distribuem pelas dez famílias da ilha. É a mesma que vamos comer daqui a pouco, na casa dela, para misturar com o açaí, o fruto cor-de-vinho colhido de manhã cedo, amassado pelas mãos centenárias – e que faz inchar o estômago – acompanhado de camarões que o filho apanhou há instantes. “Quando era mais nova subia à palmeira para colher o açaí”, conta. Depois levava esse fruto do tamanho de uvas americanas no barco, para vender na Ilha do Mosqueiro. “Demorava quatro horas a chegar, remando. Hoje já há barcos a motor. Naquele tempo era mais difícil”. E naquele tempo havia lendas. “A do homem galanteador de chapéu que encantava as moças e ia embora antes de a festa acabar. Dizem que era um boto”, conta referindo-se ao parente do golfinho da Amazónia. E apressa-se a contar a lenda da cobra que ficou na barriga da mãe do sogro depois que ele nasceu. “Chamaram o pajé, o chefe dos índios, quando a região ainda tinha índios, e ele fez umas rezas, uns cânticos. Só sei que ela ficou melhor.”

Cotijuba, vai-se dormir…

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Agosto de 2009

pordosolcotijuba

Sabemos que as viagens nos ludibriam os olhos. Mas mesmo assim, o pôr-do-sol que prometi ver em cada canto, sei-o, tem linguagens diferentes. Este não me respondeu à pergunta. Disse-me que talvez o próximo também se esquivasse a responder… Mas a paz depois foi esta…na Ilha de Cotijuba, nos arredores de Belém, das dezenas que encontramos e nos fazem esquecer que o burburinho urbano e explosão demográfica, também, ali andam a fazer estragos na Amazónia, já perto do Atlântico, o oceano.

Ivan Cardoso, Belém

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

“Moleque tinhoso” é o nome desta música melodia da autoria do cantor e compositor paraense Ivan Cardoso.  Este áudio foi registado no dia 20 de Agosto nas docas de Belém, no Pará, Brasil, enquanto o músico cantava no Marujo´s bar…

Amazónia temperada a ervas milagrosas

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

mercado

(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)

Vende-se rapé ao lado da barraca do Nildo. O cupuaçu custa dois reais o quilo. A senhora de meia-idade tira a castanha-do-pará da casca dura com um canivete para as ensacar às dúzias. E, no final da feira, na esquina do emblemático mercado Ver-o-Peso, em Belém, no Brasil, o maior a céu aberto da cidade, as centenas de garrafas com líquidos coloridos e mezinhas que Deusa Silva prepara com ervas “milagrosas” prometem curar todos os males.

“Vem cá, meu amor, tenho o remedinho que você precisa.” Viagra natural para tomar três colheres por dia, “preparo para engravidar”, tónico contra queda de cabelo, banho de descarrego “para espantar os maus espíritos” e “Atractivo do Amor”.

Deusa sabe como se atrai: “Agarradinho, carrapatinho, chega-te a mim, chora nos meus pés, busca longe, corre atrás, vai-e-volta e atractivo, quem tem alguma coisa volta de novo da perseguida: isso são as ervas que colocamos aqui, não tem segredo nenhum”, diz a erveira, que se levanta todos os dias às 05.00 e tirou um curso de inglês para “poder falar com os turistas”. “Estou quase a ir embora, daqui a pouco acaba o sol.”

Nildo Sousa ainda fica mais um pouco. Prepara há 30 anos, com a sabedoria que o pai lhe passou, as ervas que vende no Ver-o-Peso, que deve o nome a “Casa do Haver-o-Peso”, criada pelos portugueses como posto de controlo alfandegário no século XVII.

E se as ervas são o atractivo mais famoso, o cheiro a peixe, carne, verduras e temperos amazónicos entranham-se na roupa para lembrar que também dali querem sair para outras casas.

O mercado fervilha, centenas acotovelam-se, se fosse de manhã cedo os cheiros seriam de milhares de gentes.

Pôr-do-Sol a Ver-o-Peso em Belém

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

mercado

(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)

Não chove há duas semanas. Há qualquer coisa de vento pegajoso que se cola à pele, antes de a humidade se entranhar no corpo, nos olhos, no cabelo, até o suor deslizar abundante, sem secar. Depois, há qualquer coisa de verde espesso que se vê ao longe, assim sentada no Forte do Castelo, onde nasceu Belém, a do Brasil português, recortado por espaços de luz, que parecem portas sulcadas na vegetação, e por onde o rio Amazonas, cor-baço-barrento, respira de alívio, dispersando-se no delta, engolfando-se em outras águas fluviais, depois de milhares de quilómetros a perder-se em leitos lentos e caudais sinuosos.

Não se estranha, por isso, que quando ele também aqui chega, fraco, quer seja porta de entrada para a Amazónia profunda quer seja rio a desaguar na foz, antes de encontrar o Atlântico, leia poros de pele, para se agarrar a nós de gente que são mundo desta Cidade Morena, de mesclas de peles, feita de seduções forçadas há quase quatro séculos, entre portugueses e os índios Tupimunbá.

E, agora, só os abutres negros planam sobre a baía do Guajará, ao fim da tarde, sob o porto de Belém, à procura do cheiro acre de peixe, depois dos restos de pesca nos barcos ancorados, precários, numa dor de cabeça para a fiscalização, enquanto os botos-cinza ali na água, parentes dos golfinhos, vêm à tona para respirar.

O barco de ronda da polícia militar rasou-os. O caboclo que lava o corpo já não os viu, mergulhou e nadou até ao barco Jesus de Nazaré. A espanhola de visita não sabe o que são, e pergunta ao Ricardo, que guarda o forte, a olhar o mercado Ver-o-Peso, até o Sol se pôr, todos os dias. E, ao longe, esse sol, já desce o horizonte dourando as águas barrentas, enchendo-se de laranja-cor. Ricardo diz que o sabe imaginar fielmente se fechar os olhos, e que a pior altura para o admirar é no Círio de Nazaré, que a cidade anda a preparar para daqui a oito semanas, quando a maior festa religiosa de Belém enche as ruas de incenso, barracas com frituras e churrascos improvisados, numa traição consentida aos sabores e cheiros que a fazem amazónica.

Durante o ano ela é português reinventado na gastronomia, nos frutos, na língua, como a raça de mil raças daqui: tapioca, cupuaçu, buriti, açaí, bucuri, priprioca, andiroba, graviola, tacacá, tucupi, maniçoba. Quantas linguagens dentro da linguagem? Quantos gingados de pronúncias tem o português?

O Henrique Valente não sabe. Ele que já mistura o de Portugal com o do Brasil há 40 anos. E já chega: vai voltar a Portugal assim que vender a fazenda em Macapá, no estado amazónico do Amapá, a 24 horas de barco daqui. Não é mais a Belém que conheceu. A de hoje é violenta. Cresceu desmesuradamente. Tem mais de um milhão de habitantes e os tentáculos urbanos fizeram brotar arranha- -céus, ao lado de casarões coloniais e praças planeadas pelos senhores da “Lusitânia Feliz”, quando aqui chegaram.

O progresso crava problemas sanitários de águas de lodo ressequido nos passeios, insegurança, prostituição infantil e tráfico de mulheres para a Europa e países da fronteira amazónica, sobretudo a Guiana Francesa.

Andy Vale conhece os meandros. Ela que quase morreu afogada no Amazonas, depois de o barco em que seguia se ter afundado, em 2001. Esteve dezasseis horas presa pelo cabelo a galhos num ribeiro, até ser resgatada pela Marinha brasileira.

Embarcações precárias são “normais”. Negócios duvidosos também, e que o vasto caudal amazónico esconde, entre hidrovias e redutos de emaranhado de selva, sem pôr do Sol. E o que se perde no horizonte agora já não vê o “Peso”.

É meio círculo velado entre nuvens baças em despedida lenta: laranja fluorescente forte, recortado, como quem diz que amanhã, afinal, também não chove.

Tambor de Mina#1

Postado por Vanessa Rodriguesem 22 de Agosto de 2009

Pai Luiz é o mestre de cerimónias, em Belém, Pará, do “Tambor de Mina”, religião afro-brasileira criada pelos escravos do Maranhão e Amazónia. Aqui o caboclo é a entidade que “vai entrando” no pai de santo, para curar os males de espírito. É a religião que tem Marquês de Pombal e Dom Sebastião como entidades “encorporadas”. Segundo o Pai Luiz ambos foram “encantados” – passaram o portal do encantamento – e contam como passaram para outro mundo.

sinais…

Postado por Vanessa Rodriguesem 18 de Agosto de 2009

iconsinaisO mundo começa aqui. Sem coordenadas reais. Com bússolas que sentem. Azimutes desalinhados, que se seguem pelo som do vento, o gosto das águas, e o abraço das gentes. O mundo começa aqui num grão de areia. Numa viagem de mil viagens. Num alfabeto reinventado: com ar nas veias para levitar. Com rasgos nos olhos para ver mais perto. Almas, cheiros, paladares que se entranham nos poros e reentrâncias carnais como lente raio x. Não existe?

É aqui onde começa o mundo. Como oxigénio. Fotossíntese. Como raiz entranhada que esventra a terra. Desejo carnal que se enrola com a vida, sem medo de se trair. Trair é enterrar os pés e esperar que o mundo venha. Antes ser pó, que sonho por fazer.

O mundo não existe. Ele é. Obra de arte como as viagens que se pintam em nós… Quantas pinceladas tem uma viagem na alma? As interiores sem latitudes. Quantas mãos amassam a terra para ser? Quantos lugares que se impregnam em nós, antes de saber que existem? Sabem a açúcar em ponto de rebuçado. Adrenalina. Cabelos brancos que escondem histórias. Bilhetes deixados. Mesas velhas onde se roçam os copos. Acasos desencontrados.

O mundo é casa sem-tecto por onde se vê o pôr-do-sol. Por onde se reinventam as manhãs. Vidas que não passamos por um instante que o segundo mudou. Vivências. Rugas. Papel seda que se enrola à mão, macio. E se desfaz em combustão lenta. Fogo? Terra? Ar? Água em queda livre que se escorre e descobre em texturas com gotas microscópicas. Sabias que as gotas a pele não absorve? Sentem intensamente para roubar o que não interessa.

O mundo começa com lágrimas em busca de oxigénio. Sustem a respiração – o líquido ainda escorre. E o mundo é sémen que pare um filho: dois, mil, nove… É rasgos aflitos e embalos de neuroses. Sem tempo. Quanto tempo existe mais? Quantos fios por onde se escorre existem? Miragens. E o meu é “lente-ampliada-olho-de-peixe” que vê salgado com um travão adocicado. E entra nos poros da pele para ser mundo a acontecer…

Pega na fruta e rasga-lhe a pele . Lambe os dedos como se resgatasses um vida. Das sete que te dão, para multiplicares. Porque o mundo é berço onde começam as pegadas. E o olhar é gesto abnegado…Como o fogo quando arde até ao fim. Gasta-te. Bebe seiva das palavras que te dão. Redescobres em cada homem um alfabeto. Dicionário sentido para decifrar, sem reedições e risco de perda de memória. Amnésia colectiva para recordar.

A rota é homem em cada quilómetro. Rendidos ao embalo do rio. Espero por mim em cada porto de homens. Em cada mão com agruras que cosem o sustento em linhas bem dobadas para ser, antes de remendar. Se cada homem for trapo, então o mundo é manta que não cobre ninguém.

O mundo começa assim, sempre aqui, no ponto onde estamos. Onde os acasos acontecem porque seguimos viagem, provamos o suor e o cheiro ácido dos outros que nos adocica a vida. De cada gota que sai do corpo que se transforma em grão-de-açúcar. O mundo começa assim. Quando se arregaça as mangas, como prisões de (a)braços que querem sê-lo, porque escondem histórias que só aos quatro elementos sussurram. E esses nunca lhas podem roubar. Apenas ouvir como velhos confidentes.

Por isso, o mundo é livro que nunca folheamos até os sentidos decifrarem os sinais e aprenderem a olhar as páginas em branco onde se escrevem as memórias .

Sentidos…

Postado por Vanessa Rodriguesem 18 de Agosto de 2009

chuva01 As viagens são janelas sem vidros. São saídas de emergência em constante SOS. Ar fresco que passa pelo corpo e leva a alma atrás. As viagens são caminhos para chegar a casa, sempre. Às milhares de casas que ainda nos esperam de portas abertas, como abraços que nos fazem escorregar.

Esta viagem não inicia aqui. Começou há muito e respira todos os dias antes de ser. Transpira. Liquefaz-se nas coordenadas que ainda estão por dar, na expectativa de agregar sem descobrir, de viver de olhos fechados, enquanto não aprendermos a ver.

E ver pode ser isto: colocar a venda e sentir. De malas feitas em seis sentidos, mais aqueles que a cinestesia esconde e nos faz perceber que o que nos toca, agarra, magnetiza aos outros e aos lugares, é o termómetro da intensidade dos olhares, aromas, tactos, gostos, calores, humanidade, ruídos e silêncios, intuições, e espaços interpretados que não ousamos desvendar.

Queremo-los só para nós. “Schhhhh”: assim baixinho para que ninguém nos ouça. E isso vai connosco. Nas memórias, nos baús internos que reagem como reflexos condicionados do sigilo absoluto do que somos. Ou achamos que somos. E, afinal, quanto de humanidade há nos sentidos?

As viagens sabem-nos. E elas podem ser só isto: um texto que escrevemos e nos leva a levitar, um suspiro calado que nos adormeceu o redor para irmos já-ali-e-voltar. Esta viagem é aqui, portanto, onde o mundo é sempre uma possibilidade. Onde começa. Basta aprendermos a reparar, antes de aprendermos a olhar…

Esta viagem é, portanto, um kit de emergência/urgência/voo para cumprir os sentidos, antes que me punam por não ter sabido reparar que, quem sente assim tem a obrigação de partilhar, nem que seja só um pouquinho.

Esta viagem é milhares delas ao redor do que já se viu, ouviu e sentiu. (?) É um punho cerrado anti-crise global. Uma ficção: esta viagem não existe. Já foi! É uma mão encostada à parede a sentir as rugas da tinta. O estalar do verniz. O romper das veias das árvores, das raízes da terra fofa em que queremos enfiar os pés. Húmida. O aprender a tirar as máscaras, novamente, antes de as pormos.

Esta viagem é sempre um recomeço. Um reinventar de mil pores-do-sol. Cores que não existem, mais os filtros. Até vermos qualquer semelhança com a realidade. Com os sonhos.

Uma viagem é um exercício de diferenças, egos, despojamento, ensaio sobre a verdade e transparências. De dores. Choros, risos, amarguras, borboletas nos estômago, perdições. Uma paleta de emoções que pintamos no ar e para dentro. Viajar é ser pornográfico: explorar ao tutano as cirurgias dos egos dos outros.

É ir largando o “eu-anterior” com o mais leve. E se durante não chegar lá, também não importa. Foi. É. As pegadas podem até desaparecer, mas as impressões digitais envelhecidas provaram que o melhor dos sentidos é saber respirar. E viajar é isso: reaprender a respirar em nós!

o mundo começa aqui…

Postado por Vanessa Rodriguesem 18 de Agosto de 2009

sinaisdagenteUm pouco de nós e das gentes que se fazem, fizeram, hão-de ser… Ele começa exactamente do ponto de partida onde estamos. Dos contextos de resgate de sinais que são pó, água, rugas entranhadas na pele que dançam, cantam, sentem, são. O mundo começa aqui, quando a voz nos falha e voltamos a resgatá-la; quando a ouvimos de outros que nos vão dizer que também o são…

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