Viagem ao inconsciente, com o chá autorizado pelo Governo em rituais religiosos
por Vanessa Rodrigues, em Alter-do-Chão
“Traz rede, frutas, uma contribuição, e dorme bem esta noite”, diz-me a voz do outro lado da linha. “Podes ficar o tempo que quiseres”. É noite de lua cheia, por isso o ritual é “especial” e dura “um dia”, para quem quiser “usufruir” dos “verdadeiros poderes do chá”. Depois, a última recomendação: “Se estiveres a tomar algum remédio forte, é melhor não vires, porque o chá pode ter um efeito adverso.”
Não conheço a voz. Soube, através de amigos, da “Comunidade Irmandade Comuníndios Bandeira Branca”, em Alter-do-Chão, no Amazonas, que faz “rituais” com o famoso chá da Amazónia, a Ayahuasca. A curiosidade pelo líquido “sacramental” arrasta-me até lá. Falaram-me, já, da cabana redonda, no meio da floresta, onde são as cerimónias, das redes para descansar e das viagens “mentais”.
Uns pintaram, inventaram histórias, pensaram nos familiares, choraram, dançaram, riram, abraçaram e, no limite, dependendo das doses tomadas ou do grau de “elevação” mental, vomitaram. É que o líquido não é uma coisa agradável. Aqui chamado de Xamãe, é cor-de-terra, gosmento, e de uma ardência acre que desliza desde a boca até ao estômago.
“Como só ficas até ao fim do dia, o ideal é tomares apenas uma dose, para que o efeito passe”, diz-me a tal voz que, agora, sei ser do Paulo Brasil, da Comunidade Fraternidade Branca. Somos uma dúzia para a “cerimónia”. O chá é “feito em casa”, usado como forma de ascensão pessoal para autoconhecimento, diz Paulo, e aponta para o painel onde está a Resolução de 2004 do Conselho Nacional Anti-Drogas do Brasil, que permite o uso religioso da Ayhuasca. A campainha tine. Vibraria várias vezes, nas sete horas que lá ficaria, para quem quisesse repetir. Uma dose seria suficiente para que, uma hora depois, embalada na rede, olhasse para a floresta e visse cores fluorescentes como se fossem prismas coloridos; a palma da mão em câmara lenta, reconhecendo cada textura como se fizesse zoom in ; achasse que o corpo é um lugar estranho ao toque, mole, e bocejasse como se fosse a primeira vez. Os sentidos ficam hipersensíveis, em câmara lenta, e fechar os olhos é um processo de introspecção. É impossível adormecer: a mente está em hiperactividade, mesmo com a rede como embalo. A experiência é pessoal e lembramo-nos de tudo, até do Paulo a perguntar se está “tudo bem” e a dizer, no tom de voz pausado, igual ao da primeira conversa, por telefone. “Esta é uma viagem ao inconsciente, desfruta.”
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