Círio de Nazaré

Postado por Vanessa Rodriguesem 12 de Outubro de 2009

ciriodenazarePublicado no DN, 11 Out’ 2009

Oneide Bastos já sabe, há muito tempo, que mantas colocar nas janelas da casa todos os segundos domingos de Outubro. “São as de renda, alvas, de família, que ponho há anos e que a Nossa Senhora de Nazaré já conhece.” Semanas antes mandou-as tirar da hibernação e arejar para as estender hoje. A procissão do Círio de Nazaré, a maior festa católica do Brasil, em Belém do Pará, não passa à porta, “mas começa perto”, a alguns passos dali, na Catedral da Sé, às sete badaladas matutinas. E a casa da vovó Oneide, como lhe chamam os netos, agora restaurada pelo Instituto de Património Histórico e Artístico Nacional, pois as paredes e as divisões sussurram também a história da cidade, é “há muitos anos referência em Belém”.

Olhos em regozijo, mãos cunhadas de 93 primaveras, Oneide diz ao DN que o Círio é, para ela, “o dia mais importante” do ano. E “o almoço de família”, depois da procissão, “o momento mais importante da festa”. Na casa dela há 26 cadeiras à mesa para comer o tradicional pato no tucupi, molho apimentado típico paraense feito a partir da mandioca amarela. Ao longo do dia, as cadeiras já serão poucas para receber os primos afastados e os amigos da família.

“Em Belém”, diz César Neves, um dos responsáveis pela organização das festividades de nossa Senhora de Nazaré, a padroeira da Amazónia, “o Círio é mais importante que o Natal”. A festa tem mais de dois séculos e é de origem portuguesa (ver caixa). Trocam-se presentes. Compra-se a melhor comida para o “grande almoço”. O fervor é “especial”, sobretudo, no estado do Pará. Há réplicas do Círio de Nazaré em quase todas as comunidades amazónicas da região. Em Curuçá, a 140 km de Belém, Joelma Santos engordou os patos para os comer hoje, e a família Penante enfrentou quatro horas de barco desde a ilha do Marajó para “ver a Santa”.

Na televisão anuncia-se há semanas que o Círio está a chegar: é “tempo de renovação da fé”. Nas ruas há cartazes gastos de semanas com a imagem da Santa. Nas bombas de gasolina, há pequenos santuários. E as farmácias vendem o kit completo: T-shirts religiosas, pulseiras coloridas e um ‘abanador’ para enfrentar o tórrido calor amazónico, que é também um calvário da romaria. Hoje, os quatro quilómetros de procissão entre a Sé e a Praça da Basílica é feita debaixo de 33 graus.

“Todos os anos é como se fosse a primeira vez”, conta Gilmar Cosme, o decorador da berlinda, o carro que leva a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, o mais importante do Círio, para onde todos os olhos convergem, pedindo em segredo que ela “acuda” às promessas. “A Santa tem de estar linda, para que o povo se identifique com ela. Se estiver simples, dirão que estava pobrezinha”. Ele promete que, este ano, ela estará “piedosa,” como “o povo gosta”, com “cravos, lírios e angélicas”. As festividades já começaram há duas semanas, os preparativos duram um ano. Só que hoje “é um grande momento para o mundo católico”, reforça Neves, que é descendente de portugueses. Ele já esteve em Meca, na Arábia Saudita, e em Fátima, no 13 de Maio, por isso garante: “O Círio de Nazaré é o maior fenómeno religioso do mundo”.

E hoje: lágrimas, pés descalços a pagar promessas, mãos levantadas para o céu, ruas apinhadas de fiéis que tentam chegar à corda que alinha a procissão. Na baía de Guajará, no delta do Amazonas a cercar a cidade de Belém, há dezenas de embarcações em romaria. Olhada do alto, a cidade parece ter milhares de formigas coloridas em terra e em água, que se acotovelam, choram, e pedem à Santa para que, no próximo ano, a possam ver de novo como se fosse a primeira vez.

http://dn.sapo.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1387062&seccao=CPLP

De PT para BR, com devoção

Postado por Vanessa Rodriguesem 12 de Outubro de 2009

ciriodenazare1De Portugal para o Brasil, com devoção

Publicado no DN, 11 de Out’

Quando no séc. XVII o caboclo Plácido, descendente de portugueses, andava pelas imediações do canal Murucutu, onde hoje está a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, e encontrou uma pequena estátua da Santa, não poderia imaginar que seria o fundador da principal romaria da cidade. Plácido resolveu erguer uma ermida. A Santa já era conhecida nas redondezas, depois de os jesuítas a introduziram, um século antes, na tradição católica do Pará. O “milagre” começou a atrair centenas de fiéis. Hoje, o Círio de Nazaré, é a festa católica mais importante do Brasil e Património Histórico Imaterial. A tradição conta que a imagem original da Virgem, entalhada em madeira, teve origem em Nazaré, na Galileia. No séc. XII a devoção chegaria a Portugal, como símbolo de fé do cavaleiro D. Fuas Roupinho que mandou erguer a Capela da Memória, para agradecer à Virgem tê-lo salvo de um acidente. Dois séculos depois, o rei D. Fernando fundaria o Santuário Nossa Senhora da Nazaré e, desde então, o 8 de Setembro é, na vila de Nazaré, a data da devoção à Santa, celebrada com as festividades do círio da Prata Grande.

Amazónia temperada a ervas milagrosas

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

mercado

(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)

Vende-se rapé ao lado da barraca do Nildo. O cupuaçu custa dois reais o quilo. A senhora de meia-idade tira a castanha-do-pará da casca dura com um canivete para as ensacar às dúzias. E, no final da feira, na esquina do emblemático mercado Ver-o-Peso, em Belém, no Brasil, o maior a céu aberto da cidade, as centenas de garrafas com líquidos coloridos e mezinhas que Deusa Silva prepara com ervas “milagrosas” prometem curar todos os males.

“Vem cá, meu amor, tenho o remedinho que você precisa.” Viagra natural para tomar três colheres por dia, “preparo para engravidar”, tónico contra queda de cabelo, banho de descarrego “para espantar os maus espíritos” e “Atractivo do Amor”.

Deusa sabe como se atrai: “Agarradinho, carrapatinho, chega-te a mim, chora nos meus pés, busca longe, corre atrás, vai-e-volta e atractivo, quem tem alguma coisa volta de novo da perseguida: isso são as ervas que colocamos aqui, não tem segredo nenhum”, diz a erveira, que se levanta todos os dias às 05.00 e tirou um curso de inglês para “poder falar com os turistas”. “Estou quase a ir embora, daqui a pouco acaba o sol.”

Nildo Sousa ainda fica mais um pouco. Prepara há 30 anos, com a sabedoria que o pai lhe passou, as ervas que vende no Ver-o-Peso, que deve o nome a “Casa do Haver-o-Peso”, criada pelos portugueses como posto de controlo alfandegário no século XVII.

E se as ervas são o atractivo mais famoso, o cheiro a peixe, carne, verduras e temperos amazónicos entranham-se na roupa para lembrar que também dali querem sair para outras casas.

O mercado fervilha, centenas acotovelam-se, se fosse de manhã cedo os cheiros seriam de milhares de gentes.

Pôr-do-Sol a Ver-o-Peso em Belém

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

mercado

(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)

Não chove há duas semanas. Há qualquer coisa de vento pegajoso que se cola à pele, antes de a humidade se entranhar no corpo, nos olhos, no cabelo, até o suor deslizar abundante, sem secar. Depois, há qualquer coisa de verde espesso que se vê ao longe, assim sentada no Forte do Castelo, onde nasceu Belém, a do Brasil português, recortado por espaços de luz, que parecem portas sulcadas na vegetação, e por onde o rio Amazonas, cor-baço-barrento, respira de alívio, dispersando-se no delta, engolfando-se em outras águas fluviais, depois de milhares de quilómetros a perder-se em leitos lentos e caudais sinuosos.

Não se estranha, por isso, que quando ele também aqui chega, fraco, quer seja porta de entrada para a Amazónia profunda quer seja rio a desaguar na foz, antes de encontrar o Atlântico, leia poros de pele, para se agarrar a nós de gente que são mundo desta Cidade Morena, de mesclas de peles, feita de seduções forçadas há quase quatro séculos, entre portugueses e os índios Tupimunbá.

E, agora, só os abutres negros planam sobre a baía do Guajará, ao fim da tarde, sob o porto de Belém, à procura do cheiro acre de peixe, depois dos restos de pesca nos barcos ancorados, precários, numa dor de cabeça para a fiscalização, enquanto os botos-cinza ali na água, parentes dos golfinhos, vêm à tona para respirar.

O barco de ronda da polícia militar rasou-os. O caboclo que lava o corpo já não os viu, mergulhou e nadou até ao barco Jesus de Nazaré. A espanhola de visita não sabe o que são, e pergunta ao Ricardo, que guarda o forte, a olhar o mercado Ver-o-Peso, até o Sol se pôr, todos os dias. E, ao longe, esse sol, já desce o horizonte dourando as águas barrentas, enchendo-se de laranja-cor. Ricardo diz que o sabe imaginar fielmente se fechar os olhos, e que a pior altura para o admirar é no Círio de Nazaré, que a cidade anda a preparar para daqui a oito semanas, quando a maior festa religiosa de Belém enche as ruas de incenso, barracas com frituras e churrascos improvisados, numa traição consentida aos sabores e cheiros que a fazem amazónica.

Durante o ano ela é português reinventado na gastronomia, nos frutos, na língua, como a raça de mil raças daqui: tapioca, cupuaçu, buriti, açaí, bucuri, priprioca, andiroba, graviola, tacacá, tucupi, maniçoba. Quantas linguagens dentro da linguagem? Quantos gingados de pronúncias tem o português?

O Henrique Valente não sabe. Ele que já mistura o de Portugal com o do Brasil há 40 anos. E já chega: vai voltar a Portugal assim que vender a fazenda em Macapá, no estado amazónico do Amapá, a 24 horas de barco daqui. Não é mais a Belém que conheceu. A de hoje é violenta. Cresceu desmesuradamente. Tem mais de um milhão de habitantes e os tentáculos urbanos fizeram brotar arranha- -céus, ao lado de casarões coloniais e praças planeadas pelos senhores da “Lusitânia Feliz”, quando aqui chegaram.

O progresso crava problemas sanitários de águas de lodo ressequido nos passeios, insegurança, prostituição infantil e tráfico de mulheres para a Europa e países da fronteira amazónica, sobretudo a Guiana Francesa.

Andy Vale conhece os meandros. Ela que quase morreu afogada no Amazonas, depois de o barco em que seguia se ter afundado, em 2001. Esteve dezasseis horas presa pelo cabelo a galhos num ribeiro, até ser resgatada pela Marinha brasileira.

Embarcações precárias são “normais”. Negócios duvidosos também, e que o vasto caudal amazónico esconde, entre hidrovias e redutos de emaranhado de selva, sem pôr do Sol. E o que se perde no horizonte agora já não vê o “Peso”.

É meio círculo velado entre nuvens baças em despedida lenta: laranja fluorescente forte, recortado, como quem diz que amanhã, afinal, também não chove.

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