Oneide Bastos já sabe, há muito tempo, que mantas colocar nas janelas da casa todos os segundos domingos de Outubro. “São as de renda, alvas, de família, que ponho há anos e que a Nossa Senhora de Nazaré já conhece.” Semanas antes mandou-as tirar da hibernação e arejar para as estender hoje. A procissão do Círio de Nazaré, a maior festa católica do Brasil, em Belém do Pará, não passa à porta, “mas começa perto”, a alguns passos dali, na Catedral da Sé, às sete badaladas matutinas. E a casa da vovó Oneide, como lhe chamam os netos, agora restaurada pelo Instituto de Património Histórico e Artístico Nacional, pois as paredes e as divisões sussurram também a história da cidade, é “há muitos anos referência em Belém”.
Olhos em regozijo, mãos cunhadas de 93 primaveras, Oneide diz ao DN que o Círio é, para ela, “o dia mais importante” do ano. E “o almoço de família”, depois da procissão, “o momento mais importante da festa”. Na casa dela há 26 cadeiras à mesa para comer o tradicional pato no tucupi, molho apimentado típico paraense feito a partir da mandioca amarela. Ao longo do dia, as cadeiras já serão poucas para receber os primos afastados e os amigos da família.
“Em Belém”, diz César Neves, um dos responsáveis pela organização das festividades de nossa Senhora de Nazaré, a padroeira da Amazónia, “o Círio é mais importante que o Natal”. A festa tem mais de dois séculos e é de origem portuguesa (ver caixa). Trocam-se presentes. Compra-se a melhor comida para o “grande almoço”. O fervor é “especial”, sobretudo, no estado do Pará. Há réplicas do Círio de Nazaré em quase todas as comunidades amazónicas da região. Em Curuçá, a 140 km de Belém, Joelma Santos engordou os patos para os comer hoje, e a família Penante enfrentou quatro horas de barco desde a ilha do Marajó para “ver a Santa”.
Na televisão anuncia-se há semanas que o Círio está a chegar: é “tempo de renovação da fé”. Nas ruas há cartazes gastos de semanas com a imagem da Santa. Nas bombas de gasolina, há pequenos santuários. E as farmácias vendem o kit completo: T-shirts religiosas, pulseiras coloridas e um ‘abanador’ para enfrentar o tórrido calor amazónico, que é também um calvário da romaria. Hoje, os quatro quilómetros de procissão entre a Sé e a Praça da Basílica é feita debaixo de 33 graus.
“Todos os anos é como se fosse a primeira vez”, conta Gilmar Cosme, o decorador da berlinda, o carro que leva a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, o mais importante do Círio, para onde todos os olhos convergem, pedindo em segredo que ela “acuda” às promessas. “A Santa tem de estar linda, para que o povo se identifique com ela. Se estiver simples, dirão que estava pobrezinha”. Ele promete que, este ano, ela estará “piedosa,” como “o povo gosta”, com “cravos, lírios e angélicas”. As festividades já começaram há duas semanas, os preparativos duram um ano. Só que hoje “é um grande momento para o mundo católico”, reforça Neves, que é descendente de portugueses. Ele já esteve em Meca, na Arábia Saudita, e em Fátima, no 13 de Maio, por isso garante: “O Círio de Nazaré é o maior fenómeno religioso do mundo”.
E hoje: lágrimas, pés descalços a pagar promessas, mãos levantadas para o céu, ruas apinhadas de fiéis que tentam chegar à corda que alinha a procissão. Na baía de Guajará, no delta do Amazonas a cercar a cidade de Belém, há dezenas de embarcações em romaria. Olhada do alto, a cidade parece ter milhares de formigas coloridas em terra e em água, que se acotovelam, choram, e pedem à Santa para que, no próximo ano, a possam ver de novo como se fosse a primeira vez.