Publicado 20 de Set’ 2009
A norte de Belém, onde o Amazonas entra no Atlântico, a aposta é no ecoturismo para preservar a natureza.
O cenário é apocalíptico. Um vazio interrompido por troncos de árvores, secas, enterradas na areia que parece farinha peneirada. Abutres, muitos, esvoaçam em bando. Não resta peixe na orla. Apenas espinhas emaranhadas em palha e restos que o mar de água cor de terra deixou no vasto areal plano. Há ondas calmas, que são já Amazónia Atlântica, aqui na Ilha da Romana, na Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá. Fica a norte de Belém, no Brasil. Lá, onde principia o Atlântico e o rio Amazonas deixa de o ser para ser mar. Ou onde começa, em fluxo inverso, antes de subir ao ventre, no Peru.
“Esta praia selvagem é ainda um paraíso”, diz Charles Mendes, guia do Instituto Tapiaim, projecto de ecoturismo de base comunitária que, em parceria com a Estação Gabiraba, empresa com mesmo propósito, e a ONG Peabiru ajudam a preservar o local levando alguns turistas à comunidade. Há poucas casas. São cabanas de pescadores. Ao longe só se vê um deserto de areia. No horizonte, uma imensidão de água. O sol intenso absorve o azul do céu, desafiando o fotómetro. 35 graus.
A sede não aguenta cinco minutos. A pele queima. Os missionários católicos, jesuítas que por aqui deixaram pegadas no século XVII há muito levadas pelo vento que de nada serve para amenizar o calor infernal, certamente fizeram penitência com as pesadas vestes sob tal temperatura. A localidade de Abade onde se instalaram, a uma hora de barco da Ilha da Romana, ainda ostenta a igreja que lhes serviu de casa para evangelizar “o povo da Amazónia”.
A norte-americana que acompanha Charles com um grupo de estudantes dos EUA não sabia quem eles eram, até ali. Aliás, ela pouco ouve o que o guia diz. Está entretida a apanhar as bolachas-do-mar, parentes dos ouriços, que se enterram na areia. Quando mortas desfazem-se na mão. As que ela apanhou estão vivas. Charles fica um pouco irritado quando descobre o copo de plástico cheio delas. Ela pensa que ele está a brincar. “Tens de as colocar de novo na areia. Isto é uma Reserva Ecológica, não podes levar nada daqui a não ser a memória”, diz-lhe. A miúda de cabelos pretos e pele vermelha, recém-queimada pelo sol, ruboriza ainda mais e concorda. Devolve-as, até porque, se não as perdesse quando se desfizessem, perdê-las-ia no mangue da ilha (ecossistema húmido tropical, característico do encontro do rio com o mar).
Aí, a luta entre enterrar as pernas num lamaçal pegajoso e retirar os pés sem perder os sapatos é um equilibrismo só para especialistas. A luta para sair do lugar cansa o corpo em segundos: o mesmo tempo que demora a equação da adrenalina igual a pânico, quando se atravessa os lençóis de areia da praia da Romana. As extensas poças que o mar deixa sugam os pés em areias movediças. “Quando isso acontece, o que temos a fazer é deitar-nos de costas, porque elas não se afundam e, com calma, desenterrar os pés”, ensina Charles.
Quanto à memória, a da Romana, não há nada a fazer, já se entranhou cá dentro, como areia pegajosa, apocalíptica.