Manaus, 40 graus

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Fevereiro de 2010

7 de Dezembro de 2009

Do adro da Matriz à Ponta Negra, há creme de cupuaçu, Guaraná Magistral, igrejas que são colo e aconchego de vida. Há calor-inferno. Cidade Aleluia, cidade crónica, cidade terminal. Viagens a pé, Cirandas de autocarro.

Por Vanessa Rodrigues


Sai uma arca frigorífica da Kaiser da Igreja Matriz de Manaus. Vende-se Coca-Cola à porta. Magistral, também, esse Guaraná do Amazonas. Ela vem de top transparente, assim preto rendinhas, legging cor-de-laranja, roçado e sujo na bunda. Meneia a anca. A tribal dança feminina. Olha gulosa o rapaz sentado na escada. Lá atrás filmam a Igreja. E o carro de Carnes Fino Corte espera, aguarda. Reserva-se, entretanto, comida num placard ali tão perto, numa praça que quer ser adro de Igreja matriz, mas empresta em vez a uma esplanada improvisada para a festa. Haverá festa, portanto por ali. Por isso, também se reserva comida: 3621-0443, o DDD é 92, Manaus, Amazonas. Quanto de vida há em cada canto do mundo, num segundo? Nos minutos vagarosos da Amazónia? Nos minutos de vida improvisada. Pó. Há pó. E quantos segundos são tudo na mesma escada, na mesma porta de Igreja de onde sai a arca frigorífica. Este homem passa de novo agora com camisola levantada. A barriga está nua. A nudez da barriga é sinal de festa. Há festa. Haverá festa.

O palco está montado, por isso, falta o entretenimento para a malta. Já limpaste o palco? Oh, mulher, que ali limpas o palco. Varres, devagarinho. Quem te sujou o palco? Para que festa? Ah. O placard da comida que se reserva: Prato completo a $ 55; Arroz, Vatapá, Frango desfiado, farofa, Tacacá. Lá tem. Vinagrete, ora, a três reais. Fatia de Pudim ou Brigadeiro a um real. Fatia de bolo de macaxeira a dois reais. Pode encher-se a boca só a dizê-los: Macaxeira, Tacacá, Vatapá. E há porção de três salgadinhos para enganar a fome. Creme de Cupuaçu…Banana Fruta. OBS.: pratos sujeitos a alteração sem aviso prévio. A comida pode mesmo ser um imprevisto.

Há música. Agora há música. A “louvar a Deus, Jesus Evangélico” na praça ali em baixo, antes do adro que é esplanada, antes, muito antes de se subir a escada onde está sentado o rapaz que a outra, a do legging laranja-roçado, galou. Há folhas secas, tão secas, no chão do jardim onde se louva a Deus.

Destak. Calçados, Algodão. Lojão TEM-TEM. Ah, tem. Como tem. Uma cidade enlatada como Manaus há-de ter tudo: tropicalidade a ser urbana, interior a querer ser genuíno – e o porto ali ao longe mal-cheiroso! Welcome to Manaus. Na hora certa para você: Condomínio Ajuricaba; Falcony´s Piercing; Luane compra e venda de electrodomésticos, componentes eletrônicos. E o 126 vai para o centro, terminal 1, Via conjunto Manoa; Punta Negra, Guaraná Real. Jolie Madame: Ótica e Jóias Óris. Hotel Paracatu. Tem promoções? Banheiro? Água quente? Cama de roupa lavada? Colchão como deve de ser? Assembleia de Deus dias de culto. Educandos. Cachoeirinha, Centro Educacional Santa Terezinha. Gasoduto-Coari-Manaus. Forró da Cabeça. Escola Estadual Euclides da Cunha (Os Sertões não estão um pouco longe?). Transmanaus. Vila Felicidade. Marapatã. “Prefeitura de Manaus mostrando trabalho” – ah o Mundial a semear o marketing. Espírita vidente Dona Valda, Tarô, Búzios. Pernoite com pole-dance por apenas $68; Banda GLS VIP com Realização de Bruna La Close, no Rio Negro Club. Shows de Drag Queen…A parede da casa de banho do Shopping: “A prática de ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público é passível de pena de detenção de 3 meses a 1 ano: art. 233 do Código Penal”. Igreja Pentecostal Santuário dos Milagres. Fim de Linha.

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Postado por Vanessa Rodriguesem 26 de Janeiro de 2010

[Entrevistas sobre a Amazónia Brasileira]

O manauara Marco Lima é pesquisador em Ictiologia Amazónica, guia naturalista e filho da Amazónia. Anda preocupado com o impacto que a construção da nova ponte, que ligará Manaus a Iranduba, sobre o Rio Negro, terá no ciclo dos peixes amazónicos . Fala em falta de preservação, falta de políticas e falta de consenso sobre como deve ser gerida a biodiversidade num lugar onde, afinal, parece, não falta nada.

Por Vanessa Rodrigues

MarcoLima
- O que tem a Amazónia de tão especial?

É a grande caixa de pandora que a Criação nos guardou para descobrirmos agora no séc. XXI, que é a maior zona de Biodiversidade desconhecida do planeta. Não é apenas uma imensa floresta, mas uma floresta cheia de belas surpresas, para usufruto do ser humano, e que deve ser preservado para as próximas gerações.

- De sua experiência, o que precisa ser feito para preservá-la?

Reconhecer o direito das pessoas que já habitam a região e, a partir de agora, criar políticas para preservá-la, beneficiando essas pessoas: quer seja Índio, caboclo ou o imigrante que hoje planta a soja, pois eles já moram na Amazónia e conhecem-na como ninguém. E, depois, que o Governo Brasileiro crie condições e lhes dê oportunidade para o acesso à educação, com seus direitos e deveres, como populações tradicionais.

- Qual a experiência que mais o marcou na região?

Quando jovem fui visitar uma Aldeia Yanomami, em Roraima. Esses índios tinham muito pouco contato com os Brancos. Isso foi em meados dos anos 80. Recordo um episódio em que, após ter comido, dei o meu prato de comida a um chefe yanomami. Chamou-o à atenção uma simples colher de alumínio – como se fosse um produto de alta tecnologia; como nós nos impressionamos ao ver um telemóvel ou um computador de última geração. Isso marcou-me muito. Esses índios foram quase que massacrados pelas invasões garimpeiras, nessa época.

- Qual a importância de suas pesquisas para a Amazônia?

Eu faço avaliações do impacto das queimadas, seja elas feitas por brancos ou por índios na vida da IctioFauna (Peixes) e seus impactos na reprodução dos peixes. Temos descoberto coisas bem negativas e de como isso está a ter um forte impacto na vida dos peixes.

- Por que é que a ponte que estão construindo em Manaus vai ter tanto impacto na vida dos peixes?

Como o ar, vento e chuva muda a rotina diária dos seres humanos, isso também ocorre com os peixes quando há mudança de correnteza. Os nossos grandes bagres migradores, que atingem mais de 3 metros, pesando acima de 250 quilos, poderão ter, com essa ponte, o seu ecossistema alterado, na subida do Rio Negro, pois eles na sua longa viagem anual pelos principais rios da Amazónia nunca haviam encontrado essa mudança.  Por mais absurda que possa parecer, a nossa natureza é muito desconhecida e os seus “hábitos” são extremamente delicados. Não aguentam certas mudanças, como se já não bastassem as Hidroeletricas do Madeira e essa nova corrida logística expansionista, pois onde elas chegam vem, também, o efeito cupim, fr destruição lenta, porém de grande impacto.

- O que você está fazendo pela Amazónia?

Tenho feito trabalhos para varias organizações entre elas para a União Europeia, no Fundo Amazônia, fazendo levantamentos sobre devastação em áreas alagadas, pois na Amazônia chega a alagar anualmente uma área com o tamanho de Espanha nos período de Dez a Junho. Faço parte, ainda, da “Fundação Floresta Viva”, levando consciência e educação ambiental Às populações ribeirinhas; e auxilio a BBC e a National Geograpic em seus programas em áreas isoladas da Amazónia.

- Histórias de sua passagem na região?

O que sempre me chamou a atenção foi o respeito que, no fundo, as pessoas têm pela selva; quer seja um madeireiro que todos os dias corta as árvores, ou um pescador que mata um gigante Pirarucu, na época em que ele está protegido. Podem, no entanto, escrever muita coisa sobre a Amazónia vivendo nela, dormindo e acordando aqui, respirando esse ar, mas faltará sempre papel para escrever o que vivemos e sentimos na Amazónia.

- Quais são os maiores problemas da Amazónia?

A falta de compromisso que todos têm para com ela, sobretudo quem dela e nela vive; a falta de políticas de todos os governos. Os únicos, realmente empenhados em preservá-la são os Militares  - que  cometeram muitos erros  no passado, mas hoje têm uma forte missão em preservá-la num Brasil sem tecnologia. Eles construíram a Transamazonica que fez 40 anos em 2009. A Amazónia precisa de um Ministério de investimentos, de atenção específica, pois todo o mal está à porta: o narcotráfico, a mineração ilegal, a Biopirataria. Precisamos de Governo na região, pois com ele se aplica a lei, e os direitos são garantidos. A Amazónia é um património do mundo que o Brasil foi sorteado para zelar.

Amazónia polui

Postado por Vanessa Rodriguesem 25 de Janeiro de 2010

Publicado no DN, 24 de Jan’ 2010

fabrasilAmazónia, o ‘pulmão do mundo’, é também o paraíso que mais polui

Por Vanessa Rodrigues, em Manaus

Se não se ouvisse este barulho, ensurdecedor e contínuo, de um motor que parece querer roncar, mas não chega a fazê-lo, a comunidade Novo Céu, a cinco horas de Manaus, estaria no breu, quando a noite cai. São dois geradores a funcionar o dia todo, a desafiar a lei do ruído, que saem da termoeléctrica para garantir que haverá televisão, frigorífico e luz em todas as casas, por ali, durante todo o dia.

Para as centenas de famílias que ali vivem, a luz trouxe “o progresso”, a cerveja “gelada”, os congelados e, sobretudo, a telenovela. Há, ainda, centenas de outras comunidades, algumas a dias de viagem das cidades mais próximas, ao longo da Amazónia, que, ou racionam a energia dos geradores ou nem sequer sabem o que é ter luz.

Só que a conta ambiental que se paga pela electricidade na região, vinda das termoeléctricas, é demasiado alta para a Amazónia, para o Brasil, e beneficia um propalado aquecimento global: os geradores das termoeléctricas usam gasóleo. Aquele fumo espesso, escuro; aquele cheiro azedo a queimado: mais de seis milhões de toneladas de dióxido de carbono são despejados pelas cerca de 300 centrais termoeléctricas que dão luz a sete estados da Amazónia. São estes números, menos conhecidos, além do desmatamento, que engrossam a conta do Brasil como o quinto maior poluidor do mundo.

A floresta amazónica é considerada um dos “pulmões do mundo”, um laboratório de biodiversidade; com características geográficas peculiares, um paraíso ambiental. Só que é, também, uma das regiões mais poluentes, que não produz gasóleo para alimentar as termoeléctricas de que dependem milhares de famílias. Imagine-se um labirinto de rios e afluentes e tem-se uma ideia do que é a Amazónia. Então, como consegue chegar esse derivado de petróleo?

O rio Amazonas é rio-mar, extenso, profundo, por isso, mensalmente, conseguem atracar, em Manaus, pelo menos cinco petroleiros carregados de 180 milhões de litros de gasóleo para as abastecer. De onde vêm? Percorrem mais de seis mil quilómetros, em 15 dias (na melhor das hipóteses porque a oscilação de cheias e secas dos rios pode tornar a viagem num périplo desgastante) do Sudeste brasileiro até Manaus, numa operação que custa cerca de quatro milhões de euros, por mês. Às vezes, também, é importado da Venezuela, Coreia do Sul, Índia e EUA.

De Manaus, o petróleo segue para outras regiões em camiões e barcos. Há trajectos pesados e morosos, como o que vai até Cruzeiro do Sul, no Acre, em 25 dias, e que tem mais quatro mil quilómetros de viagem de barco pelos rios sinuosos da região. As condições chegam a ser adversas e contraproducentes: dependendo do destino do petróleo pode chegar a gastar-se dois litros de combustível para transportar cada litro que vai alimentar a termoeléctrica. A viagem é longa, cara, criou já uma dependência e a maioria dos moradores da Amazónia precisa racionar a energia, por si também, onerosa, para ter luz o mês todo.

Só que se não for o barulho ensurdecedor do gerador, com esse cheiro a gasóleo queimado, não haverá luz na Amazónia. Dizem os especialistas que é “difícil” mudar o cenário. A densa floresta galgada por rios muito largos torna “impossível” instalar linhas de distribuição; há pouco vento para eólicas e os projectos de energia solar, a energia limpa mais viável para a região, não saem do papel.

Amazónia, o ‘pulmão do mundo’, é também o paraíso que mais polui

Amazonas Rio-Mar

Postado por Vanessa Rodriguesem 29 de Novembro de 2009

amazonasrioPublicado no Diário de Notícias, 29 Nov’ 2009

Por Vanessa Rodrigues, Manaus

De Belém a Manaus são seis dias pelo Amazonas. Viagem a bordo de um navio que carrega viajantes à procura da Amazónia e gente a recomeçar uma nova vida

O navio mercante Santarém recolhe a âncora em Belém com três horas de atraso. Já há música alta na popa e cervejas na mão dos viajantes. Alguns lançam latas ao rio. O comandante Douglas (um norte-americano da Georgia que se apaixonou por uma brasileira, casou, separou-se e não saiu mais do Brasil para ficar perto da filha) avisa num português delicado, que agora é de vez. A viagem até Manaus já começou, pede desculpa pelo atraso e diz que é “normal”.

O que ele quer dizer, na verdade, é que os próximos seis dias terão 1300 km, com o rio Amazonas a servir de estrada, e pouco mais de duzentos passos, por dia, em corpo confinado: camarote-proa-estibordo-bombordo-popa. Haveria, porém, outras coisas nesta travessia Belém-Manaus – a mais famosa e movimentada da Amazónia – que ele não sabia que queria dizer. Coisas que estavam já nas entrelinhas e que, também, são quotidiano “normal”: um motor avariado que nos roubou um dia de viagem, centenas de bichos nocturnos que invadiriam o barco, sujidade, a pobreza da gente que o barco carrega, a comida tipo ração e aquele cheiro pestilento vindo das casas de banho.

Em frente, estão amarradas as dezenas de redes. É lá que dormem os que não têm dinheiro para pagar o bilhete de barco (é também lá que comem, defecam e se roçam em promiscuidade com a rede do lado) ou alguns estrangeiros iludidos com a ideia de viajar pelo Amazonas de rede (que balança violentamente sempre que o rio se enfurece).

Ao fim de seis dias o odor torna-se escatológico, insuportável. E o romantismo da viagem torna-se uma tortura. (A solução para enganá-lo ainda é o camarote). A mulher da limpeza atira com um líquido desinfectante lá para dentro. Não tem coragem de entrar para limpar. Não há controlo, nem denúncias da falta de higiene, apesar do cartaz na parede: “Disque denúncia”. Tudo é “normal”.

Lá fora, onde o cheiro é quente e doce, o Amazonas é uma valsa lenta. Nas margens, há crianças a brincar e gente que se lava. E há pequenas casas ribeirinhas de madeira que parecem de bonecas, assentes em estacas e que se chamam palafitas. Serão centenas, isoladas, até Manaus. Quem conhece os segredos deste rio conta que tem personalidade forte. É temperamental: desnuda margens e cobre de águas barrentas plantações inteiras. Depois, é um Rio-Mar vaidoso. Muda a paisagem por onde passa, quando quer, num vaivém de cheia e seca. No início deste ano fez um pacto com as chuvas e fustigou por mais de dois meses as margens, deixando várias famílias na miséria. Já se redimiu dando peixe abundante. Tem, ainda, a mania das grandezas. De uma margem à outra, pode chegar aos 50 quilómetros, por isso é o maior e o mais extenso do mundo. E quando menos se espera, ele sai dessa condição de prepotente e cai num confortante silêncio.

Como o daquela noite, apesar do ambiente pesado. Havia qualquer coisa estranha nos homens que olham de esguelha para o bolso dos outros à espera que se distraiam para surripiarem. Homens que viajam com pouco no bolso para começar uma nova vida. Como o Sandro, que está zonzo, bêbado. Diz que em Boa Vista, Roraima, é que há dinheiro. É lá que se vai fazer gente, para “quem sabe” realizar o sonho de ser polícia. Depois chora, bebe mais um gole de cerveja e conta que já foi travesti em Brasília, onde nasceu. Confessa que há “um homem” no barco “a recrutar para o garimpo de ouro”, ilegal. Ele não vai. Tem o corpo “seco”, fraco e “agora é de vez”, aquela viagem é o “recomeço”. “Acredita em mim?”

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