Arquivo de Outubro de 2009

sinais diários [.1.]

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Outubro de 2009

10/10| Dia 54 São 5 horas da manhã. O avião é às 7h10: regresso a Belém para passar o Círio de Nazaré. Tanto pediram que fossemos, que estivessemos, porque era (é) uma experiência única. No final conseguimos estar, graças a César Neves da Unimed Belém, feito de semente portuguesa, e um dos responsáveis pela coordenação do Círio. “É o maior fenómeno religioso do mundo. Impossível faltar”, disse. A Nossa Senhora da Nazaré é a padroeira da Amazónia.

Volta-se de avião para a terra do Círio. O táxi chegou às 5h20. Na rádio o locutor inflamado (a esta hora, sim) brada pelos “pecados” do Pará, da promiscuidade política, da falta de médicos e da precariedade do sistema de saúde da região, incitando os paraenses a serem “cidadãos”. Depois, um bloco noticioso, de narração improvisada sobre tiros e escatalogia criminal da região. “Foi baleado à porta de casa”.

No aeroporto de Santarém, vemos uma mão a acenar. Àquela hora ainda estávamos a dormir em pé, orientados por um qualquer mecanismo interno que nos permite cumprir os mínimos olímpicos nestas circunstâncias. Não poderia ser para nós! Insistem. A mão acena, incessantantemente. Uma, duas, três, quatro: várias mãos a acenarem. Blaf! Rostos vermelhos, cabelos loiros. Não reconheço logo à primeira. É o grupo de estudantes do projecto de intercâmbio SIT dos EUA que conhecemos na Ilha da Romana e em Marudá o mês passado. “Incrível que os nossos destinos voltaram-se a cruzar, às 6h da manhã no aeroporto de Santarém”, diz a mais alta. Vieram de Manaus e regressam hoje, no mesmo voo, para Belém.

Fazemos o caminho inverso que fizemos de barco. Do alto vemos o mesmo rio e desfazemos as dúvidas: “Se o barco tivesse parado em alguma daquelas imensas margens e nos tivesse deixado ao acaso: 1. Andaríamos centenas de quilómetros sem encontrar vivalma; 2. Andaríamos até perceber que o pedaço de terra onde nos deixaram é uma ilha que o Amazonas resolveu criar este mês. “Nem os brasileiros conhecem o Amazonas”, dizia Douglas dias atrás, o comandante do barco Santarém da companhia Marques Pinto que nos carregou por 3 dias pelo rio. “é preciso estar muito atento porque o rio muda muito e é traiçoeiro. Forma baías num só dia, deixa a descoberto ilhas que submerge noutras alturas”. Assim, visto do alto, o Amazonas é uma grande estrada de água, com igarapés dentro de canais, rios dentro de ribeiros, como uma gigante língua geográfica. Quando há um maior pedaço de terra, vemos a paisagem mais mediática da Amazónia: terra desmatada, com pequenos pontos brancos e castanhos da família pecuária. “Não é essa a vocação da Amazónia, por que razão destruí-la para a pecuária e não aproveitar os recursos”.

Chegar a Belém é pensar sempre que esta paisagem que se vê do alto, marca. E qualquer tentativa de explicá-la, descrevê-la, partilhá-la é uma frustração que se agarra aos dedos, amarrando-os em pura letargia.?Às 16h30 começa a missa da trasladação da Nossa Senhora da Nazaré….

09/10 | Dia 53 O despertador avisa: 7 horas da manhã. (Não tenho alma de marinheira, assim, madrugadora. Só a tenho no deslumbre de navegar, ponto.!Nada de fantástico, portanto) A noite teve ondulação, alergia, calor-frio, nariz congestionado, colchão duro, lençóis puídos (já o disse?) e corpo massacrado. Será que ainda falta muito para Santarém? O telemóvel já apanha rede, depois de 2 dias sem qualquer sinal. O pequeno-almoço está a ser servido desde as 6h. Ao longe vê-se um arranha-céus. Espera aí, um arranha-céus no meio do rio? Hã? Às 7h30? Ali é Santarém. Ainda dá tempo de tomar pequeno-almoço? “Com calma, o barco ainda vai demorar uma hora a lá chegar e ficaremos atracados até às 14h em Santarém”, diz o comandante. Mas a senhora da limpeza quer arrumar a cabine e não pára de perguntar pela chave, como se fosse uma “éfemera”. Digo-lhe que ainda vou arrumar a mochila e que, numa hora, despacho tudo. Depois o comandante diz-me para ter calma. Não preciso apressar-me. Mas para a senhora, não adianta. De 5 em 5 minutos a senhora resolve bater á porta para que eu não me esqueça de lhe dar a chave. E mesmo quando começo a ajudar uma senhora, escada-abaixo com a mala, a mulher “efémera” começa a irritar-se e pergunta se aquela era a minha última mala e se a cabine já ficou livre. Eu começo a irritar-me, confesso, e pergunto-lhe se o barco não vai ficar até às 14h aportado. Ele diz que sim. Eu reforço que ainda são 8h e que pretendo ficar mais duas horas. Ela entra em desespero. Eu não entendo, mas ela só quer, no fundo, que eu não me esqueça de lhe dar a chave (isso porque a noção de arrumação de cabine é substituir o lençol puído por outro e mudar a fronha= 5 minutos). Pragueja um pelo-amor-de-deus-alto seguido de um tanto-tempo-para-entregar-a-chave. E isso porque aportamos há cinco minutos…

Lá fora passageiros tiram fotos com o comandante. Descarregam e carregam o barco. Homens de corpos suados e braços nus musculados, peles morenas, brancas e pardas. Há um homem chato que pergunta se quero táxi. Não gosto de colas assim, mas acabamos por ceder porque não há mais nada ao redor.

Procura-se pousada, hotel, pouso, cama, camarata, um colchão, qualquer coisa a preço amigo, honesto e “limpinho” para pousar o corpo… O taxista revela-se realmente uma daquelas almas faladoras tipo melga-já-chega-por-favor-num-tom-de-pelo-amor-de-deus-da-mulher-efémera-qualquer-que-ele-seja-desde-que-me-acuda. Depois, como todos os taxistas, ele é uma boa fonte de histórias. Esteve 17 anos no Garimpo de ouro ali na região do Tapajós. E já rodou vários: Mato Grosso, Rondônia e Bolívia. Diz que hoje há menos ouro. E sim usava mercúrio, claro. E sim é dinheiro que tão fácil vem, tão fácil vai. Uma ilusão, como dizem todos os ex-garimpeiros. “Ganhava muito, mas também quando vinha para a cidade, gastava tudo. No dia seguinte tudo voltava ao zero”, conta. “Houve uma vez que encontramos 600 gramas de ouro”. Sabemos: à terceira é de vez…E foi, o meu ouro não teria 600 gramas, mas teria uma cama, WC com vista para o Tapajós!

08/10| Dia 52 Parece que ainda não se saiu de Belém. O dia que passou foi lento e célere. O oposto de São Paulo. Se um dia ali parecem, por vezes 7, outras até 15 – porque se vive alucida e vertiginosamente nessa cidade onde tudo acontece – aqui os dias lentos e , ao mesmo tempo, rápidos, passam em dias como se fossem um. Não há telefone, não há internet, há o silêncio, uma imensidão de água cor-de-barro, margens que parecem repetir-se, mas são sempre diferentes, floresta imensa (E penso que se o barco me deixasse aqui agora, para onde iria? Onde estão as casas? O que tem ali no meio? Quantas centenas de quilómetros teria de galgar até encontrar gente? Quanta gente? Será que encontraria? Será que quereria? O dia é tão lento e, agora, tão rápido. Santarém é já amanhã e, cá dentro, penso que não quero. Que quero continuar ali a sentir a modorra dos dias, como se fosse um. A viver o tempo de um barco, a menos de 50 quilómetros por hora, em que nos fazemos cá dentro e mudamos a noção de tempo. O que terá acontecido em 2 dias de viagem no mundo. Será que importa? O barco pára. O motor afagou. “É da gasolina que vendem hoje em dia”, diz um dos assistentes do comandante. “Vão ter de limpar os motores. Vamos ficar parados mais um pouco”, avisa. É a segunda vez que acontece. “Podem ficar tranquilos”, assegura.

Vinte minutos depois os dois motores já estão a funcionar. Começa a deitar-se o sol. Desperta a lua. Há um aglomerado de nuvens pesadas ao longe. Vários flashes cor-de-laranja acendem-se de 20 em 20 segundos. Ar de trovoada. O foco de luz potente do barco já espia as margens. Há centenas de bichos-borboletas-mosquitos atordoados nos corredores do barco com a luz e o calor. Hoje não corre brisa alguma para atenuar a sauna cá fora. São quase 21h e o calor gasta o corpo num arfar atrofiado. Só se está bem dentro do quarto, com ar-condicionado duvidoso. Seja!

07/10 | Dia 51. Amanhecer em Rio-Mar já Amazonas. Bateram à porta às 7h para o pequeno-almoço: melancia, pão, queijo e café. A mulher que parece a cantora espanhola Rosana vai para Manaus com o pai. Diz que já foi assaltada num barco no meio do Amazonas, por homens em pequenas canoas que se atracam ao barco.

As palafitas perdidas nas margens, sem luz, a transpirar de gente. O Brasil certamente tem mais de 190 milhões de habitantes. Esta gente que aqui mora, longe de um Brasil que se diz estar a fazer potência, certamente não se importa com as burocracias de um bilhete de identidade. Registo de quê? Cada vez mais canoas se atracam ao barco. A técnica é simples: um ferro para agarrá-lo, amarram a corda e apanham boleia do barco. Outros atracam para vender camarão e açaí. Há gente “estranha” à tripulação a circular no barco. Diz-se que é preciso ter cuidado. Há canoas que pedem esmola. E há um pôr-do-sol brutal que põe em contraluz as canoas e os homens do Amazonas para um fim de tarde, que jamais se repetirá. Há nuvens cinzentas, carregadas, com gotas ainda por formar, ansiosas por entrar nesta água mágica.

Começa a chover, violentamente. Quero agarrar a câmara de filmar, a máquina fotográfica, a caneta, o papel, a alma, mas fico agarrada à cabine do capitão: a achar que tudo aquilo é irreal e que não haverá registo mais fidedigno do que o que está cá dentro para cunhar aquilo: a chuva a cair copiosamente, o cinzento da água, do ar, da névoa ao longe, da invisibilidade do caminho, com desconhecidos ao leme. Ás vezes é sim: vale mais confiarmos nos desconhecidos para nos guiarem no olhar turvo. Para aquilo que eu não vejo, não domino e não sei. Entrego no deslize destes que conhecem o Rio-Mar como ninguém. Nada pergunto. Só quero olhar. Por isso, garanto: não haverá fotografias desta viagem.

06/10 – Dia 50. 8h: Três textos para terminar. Não sei quando voltarei a ter internet”. Ok. O pequeno-almoço da Nice é energético garantido para enfrentar a anarquia do sono. Preparativos finais para o grande embalo de 3 dias para subir o Rio Amazonas. Escrita em dia, a mil. Vlup! Velocidade máxima! Compras finais. Almoçar às 16h. E 17h30: O Philippe achou que estávamos perdidos e atrasados para o embarque (e com razão). Ele engoliu as malas no carro até ao porto Marques Pinto. Engoliu-nos. Ainda gracejou com o facto de isto de se ser português é muito complicado: Nunca se sabe quando vai, para onde vai, como vai, se vai chegar a horas, a que horas volta, quando volta, ou sequer se volta. Bem vistas as coisas, tem absoluta razão, menos no facto de isto ser coisas de português. São coisas assim, universais, intraduzíveis, de uma certa condição contínua de um estrangeirismo itinerante. Estranhos ao tempo, portanto. Philippe (que aparece aqui nestes sinais com duas grafias: o antes de sabermos que era com PH e com dois pés – embora nem ele ache muita piada; e o pós-revolução-tirania-de-conhecermos-a-grafia-que-consta-no-ERRE-GÊ –documento de identidade brasileiro “Registro Geral”) pôs o pé no acelerador e disse que poderia mudar de profissão para taxista profissional. Vanessa murmurou um não-é-para-ouvires-mas-se-ouvires-até-tem-piada: “Claro que podias, você é louco dirigindo que nem eles”. Ripostou (ouviu e até teve piada). “É! Dou dinheiro, mas não dou confiança”. 😉 Depois, deu um “tchau” como quem diz “até já” e disse que a Festa do Círio seria por conta dele. Quase quatro horas depois o barco Santarém, com o comandnte Douglas ao leme, sairia do porto, já pela noite dentro e a deixar no bombordo as luzes de Belém. Primeiro embalo violento seria a chegar a Breves, mas o cansaço anestesiou o corpo como quem diz nada-me-importa (apesar do colchão duro, do cubículo-cubicular para o “João Pestana” encostar os cílios, o ar-condicionado duvidoso, amostra de lençóis puídos e quase a rasgar, WC com chuveiro por cima da porcelana – hum!!!! – e o calor-calor-calor);

05/10 – Dia 49. EcoPousada Miriti. Hora da pena. Está sem tinta. Estou em contagem decrescente com os textos, sem criatividade, cansaço (outro clássico nesta jornada, tudo é novo, genial e há pouco tempo a perder, sempre) e ainda tenho de negociar o preço do bilhete de barco. Ligo para a primeira empresa (que me garantem ser das melhores e a única recomendada pelo guia Lonely Planet). O gerente do barco, Ednilson, da Marques Pinto Navegação – de mercadorias e passageiros- diz que pode reunir comigo durante a tarde. Têm um porto exclusivo e vão sair às 18h do dia seguinte. Ele alinha fazer um desconto no camarote. As condições do redário são insalubres e para quem viaja com computador e máquina fotográfica, é melhor esquecer a experiência antropológica por esse prisma. E um dia depois de embarcar o fedor nauseabundo que sairia do WC e dos chuveiros seria motivo para um ainda-bem-que-viajo-de-camorote (se bem que o cubículo a que se chama camarote com um WC dúbio e um colchão insalubre com um lençol puído não fica assim tão atrás, mas tudo pode sempre piorar, sabemos, por isso está bom assim).?Depois é hora de supermercado: fruta, leite de soja e “ração” extra de bolachas… Mala, textos, mala, textos, jantar e mínimos olímpicos do dia cumpridos…

04/10 – Dia 48 Acordo na Pousada do Boto. Depois de uma noite de baratas voadoras, enroladas no lençol atirado para o chão do WC (pois pior do que vê-la só mesmo matá-la. Deixá-la estar embrulhada para não se ouvir o “chuac” do chinelo no dorso do bicho). Repelente a 100% perfume exótico no corpo. Nada adianta. Os mosquitos picam por cima da roupa. Vai-se almoçar ao centro de Salvaterra. De bicicleta? Na pousada diz-se que sim, que há. Hum. Um dos donos, diz que afinal elas não estão assim em tão boas condições. Está sem travões e o pneu em baixo. Acabo por pedir emprestada a de um funcionário. A fome aperta. O tempo também. O barco de regresso a Belém é às 15h, o único e a camioneta passa por ali às 14h. Ainda terei de rodar uns 30 quilómetros até ao porto. Quase 13h e ok. Vamos lá enfrentar a bicicleta sem travões. Não há-de ser assim tão mau. O almoço demora. A hora está quase a esgotar-se. O Jurandir, dono do restaurante, oferece caju da casa, manga e apricot para levar para a viagem e pede, tal como em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para não me esquecer de o incluir na minha história pela Amazónia. Dá-se ao pedal, sob um calor tórrido e, em menos de 5 minutos, a Pousada parece que apareceu mais rápido. O autocarro aparece à hora marcada. Está com lotação esgotada. Sobram dois lugares incertos. Compra-se queijo do Marajó (de búfula) antes de embarcar. Há caju para vender. Do Marajó até Belém seria, desta vez, 4h30 de barco, lento, com Darcy Ribeiro no colo e “O Povo Brasileiro” cá dentro, do barco, de mim, desta viagem…

03/10 – Dia 47 A tirania das 7h badala (muitas vezes ouvirão falar dela). Há um calor intenso que se sente no ar que, noutras ocasiões, denunciaria que seria certamente mais tarde. Às 7h não é possível que esteja todo este calor. Está! Os olhos amolecidos resguardam-se como quem diz: “É cedo de mais para que queiras que nós trabalhemos para ti. Assim não vamos ver como queres”. Eles ainda estão assim, lentos de sono, com aquele calor febril de cansaço. A Cris já espera no sofá. Acordou às 5h30. Sem pestanejar ou olhos febris traidores. Na Vila do Pesqueiro acorda-se cedo. Quem vive em terra de pescadores, mesmo que não o seja, habitua-se a sê-lo um bocadinho no sono, pelo menos: que madruga, ainda que se deite tarde. E a maré já está baixa.

Não conseguiremos ir de canoa até à Vila do Céu pelo igarapé. Temos de ir pela praia. Afinal acordou-se tarde. O despertador não foi tirano em pleno, mas sim maquiavélico: despertas cedo para massacrar o corpo, mas não permites que se cumpra o objectivo! Assim cansas o inimigo pela frustração. Passamos de canoa regional para a Vila do Céu. Enterramos os pés na areia numa caminhada de 20 minutos entre sementes secas trazidas pelo mar e restos de coco. Vila do Céu é uma comunidade esquecida. Há muitos. É estatística silenciosa. A luz chegou há um ano, mas não há saneamento básico e os poços no Verão secam. A população chega a passar sede. Esta é uma realidade numa das regiões mais alagadas do mundo. Hora de pescar. E de comer côco encontrado na água que a Cris cortou, puro, branco por dentro e delicioso. A vela já está ao vento… Estamos de regresso à Vila do Pesqueiro. Vamos pescar raia. Ele lança a tarrafa e o fio. Não vem nada. Mais tarde aparece uma raia. O pescador devolve-a ao rio. Diz que antigamente a Vila de Pesqueiro era mais avançada no rio. Agora recuou. As estacas que vemos na praia são o que restou de uma casa que era de um português, conta. “Ele tinha aqui uma pequena loja. Já se foi. O filho dele ainda mora aqui, mas não sei onde”, diz. Ao fim do dia, o rio traz sementes, caroços, cocos, galhos secos e lixo que os barcos vão deixando: garrafas de plástico, garrafas de lubrificantes, sacos plásticos, e pedaços de vidro, cordas, redes… “Ás vezes fazemos um mutirão com as crianças, para tirar algum lixo da praia e consciencializá-las sobre a importância da preservação do lugar onde vivem”, diz Cristina Penante, que mora na região e é uma das porta-vozes do projecto VEM de ecoturismo comunitário que a empresa Turismo Consciente de São Paulo desenvolve na Vila, em parceria com a Estação Gabiraba. O objectivo é valorizar os saberes e tradições da região, para que não percam o que de mais rico têm: a cultura local que está nos poros das gentes dali.?É hora de almoço. O calor intenso mói o corpo. A areia escalda os pés. É preciso arranjar uma sombra rápido. Há abutres na orla. Cheira a peixe. A espinha de uma raia de respeito jaz sobre uma poça que o rio esqueceu e os bancos de areia aprisionaram. Há relva sobre a areia. As ovelhas pastam na praia. As palafitas estão adormecidas com o calor. A vida está lá dentro a descansar nas redes.

O esparguete de camarão que a sogra da Cris preparou com molho branco sacia o estômago. O sumo de caju (o cajueiro está mesmo em frente a mim) sacia a sede. Uma hora depois apanhamos boleia até Salvaterra, do outro lado do rio. A Cris acompanha-nos. A balsa vai cheia. Camiões vazios que vieram abastecer Soure de cerveja. 15 minutos de travessia. Uma pickup aumenta o volume do rádio. Ouve-se “Axê” , o estilo musical característico do nordeste brasileiro e que consagrou cantoras como Ivete Sangalo. Do outro lado, já em Salvaterra, os camiões levam escondidos passageiros clandestinos que se puseram à socapa nas plataformas vazias para apanhar uma boleia. A nossa deixa-nos na Pousada Boto, com vários apartamentos de madeira – outrora devem ter sido um sucesso, hoje o restaurante não funciona; e os apartamentos de madeira precisam de umas obras.

À tarde, tentamos ir à comunidade Quilombola de Bacabal, a cerca de 10 quilómetros da cidade. Quilombola significa ser descendente de escravos, que fugiam do trabalho forçado e se escondiam na mata, formando o quilombo. Aí puderam manter as tradições, a liberdade e respirar. O número de telemóvel que tenho para tentar ir lá (ainda hoje) não atende. Insistimos. Quem atende já não mora mais naquela comunidade – a mais tradicional da região. Mudou-se para outra, também quilombola, porque a mulher é de lá. Hoje não é dia de visitas, não haverá ninguém para falar sobre a história da comunidade. Mas a irmã dele ainda mora por ali e pode falar com a líder da comunidade para nos receber. Arrancamos. Negociamos com o taxista que a Cris conhece e vinte minutos depois estamos na Comunidade Quilombola de Bacabal. Pela estrada de terra (“Quando chove fica intransitável e é muito difícil as comunidades conseguirem ir à cidade”, diz o taxista) vemos animais mortos, abutres, casas de madeira e tecidos esfiapados ao vento, lixo.

Bacabal já não mantém a tradição das festas dos antepassados. Hoje é sábado. Haverá festa à noite, e o que ouvimos é o technobrega: o ritmo que enfeitiça todo Pará. Como explica a minha amiga Ana Cláudia Bastos: “É uma grande resistência à indústria fonográfica”. Os Dj´s produzem músicas a um ritmo alucinante: juntam músicas internacionais conhecidas: tipo as Britney Spears da vida; e em forro; e remisturam com o ritmo do brega e batidas electrónicas. A preocupação não é traduzir, mas inventar uma nova letra para a melodia e adaptar. O marido da Cris, por exemplo é DJ e tem as pastas de músicas divididas por mês. Explorar o que ele tem no computador por cada pasta é um desafio que pode demorar dias. Ele grava um CD para nós. Pura experiência antropológica! Genial!

Voltamos de Bacabal e o jantar resume-se a uns pães com queijo fiambre e um suco remeloso com excesso de açúcar de goiaba (branca???). O sono vem cedo, mas seria interrompido por um hóspede inesperado de madrugada. Uma barata voadora que resolve repousar, bem no momento em que se acende a luz, do meu lado. Passo a almofada por cima para a isolar e dobra-se o lençol onde ela está. Ninguém tem coragem de ouvir aquele “crunch” quando ela morre, por isso melhor isolá-la no lençol onde já pisou. Tirá-lo de vez e voilá, reinventar um lençol e outra almofada para dormir e esquecer que ela está a tentar libertar-se das amarras do lençol criminoso no chão da casa de banho com a mochila por cima a fazer de peso… O importante é adormecer rápido porque o corpo quer mais do que o pensamento.

02/10 – Dia 46 É cedo. As sete. Arrumar as mochilas e pô-las a marchar. A Cris já espera na Polícia Militar de Soure. Quero saber, afinal, que história é essa da polícia domar búfalos (há quatro raças: Murrah, Jafarabadi, Mediterrâneo, Carabao) desde tenra idade, para ajudarem a policiar a região. “Eles são animais impressionantes e chegam onde nenhum outro consegue chegar por se darem muito bem na água”, diz o cabo Viteli do 8º Batalhão da Polícia Militar de Soure. “É um animal adequado para áreas alagadas, como esta, sobretudo no combate ao roubo de gado na região”. Colegas de outros batalhões acharam que esta história era uma piada, até porque “não é fácil domar um búfalo”. Começa “quando ele é pequeno”, conta Vitelli, numa relação de confiança entre “o domador e o animal”. Só que “quem nasce com sangue marajoara” já nasce a domar búfalos, brinca.

A Ilha do Marajó é a maior ilha fluviomarinha do mundo e tem o maior rebanho de búfalos do Brasil (600 mil cabeças). A paisagem muda muito de acordo com as estações do ano, por isso, os animais são usados como o principal meio de transporte. Conta-se que eles terão chegado à ilha no século XIX, quando um navio que os transportava e seguia para a Guiana Francesa, naufragou ao largo.?Já no centro de Soure, são cinco minutos a pé até à oficina do senhor Carlos, o artesão que ainda guarda as tradições do artesanato marajoara, um legado indígena, que Carlos guarda originalmente da família. Ele hoje não está, mas a esposa discorre o discurso habitual para quem visita a simples oficina que preserva todo o trabalho artesanal. “Cada peça tem uma história”, diz. “Os desenhos significam, coragem e força, subtileza, felicidade, saúde”. As máscaras, por exemplo, eram “usadas para protecção e hoje devem ser colocadas em casas”.

Conseguimos boleia para a Vila de Pesqueiro, onde a Cris mora e onde haverá guarida esta noite. De casa dela até ao peixe grelhado do almoço são uns 15 minutos a torrar ao sol. A praia cheia de palmeiras, água límpida e um arenal imenso é demasiado perfeitinha para ser real. Está muito vento, quente. As cadeiras querem voar. Os camarões mal se mantêm no prato, o balde de Schin quase tomba. A maioria da população ainda vive da pesca na região. O projecto de ecoturismo do turismo Consciente do qual a Cris faz parte é, confessa, “uma importante fonte de renda para algumas famílias”: recebem em casa um número reduzido de pessoas, interessadas em saber como vivem, as riquezas e os segredos da comunidade. Um desses segredos, apenas para estômagos e olhar mais resistentes é o turu: uma minhoca gosmenta que se extrai das árvores secas do mangue, rachando o tronco e seguindo os veios da madeira, sulcados pela minhoca. A “minhoca” é um manjar muito apreciado na região, com sabor semelhante à ostra, dizem. O meu estômago não foi tão resistente quanto o olhar curioso. Come-se com sal, bem cozinhada, e como caldo. “Diz-se que tem muitas vitaminas e que é bom para o cérebro”. O nosso anfitrião conhece-lhe outro segredo: “O turu é considerado o viagra da região. Aliás no mercado, já ninguém o vende como turu mas como viagra”, conta.

O dia começa a perder-se no horizonte. E na Vila de Pesqueiro anoitece cedo. Nesse dia, à noite, apesar de estar sem rede de telemóvel, e sem internet, saberia que o Rio de Janeiro seria a cidade anfitriã dos Jogos Olímpicos em 2016. A TV tem omnipresença…

01/10 – Dia 45. O Hotel continua com ar de cenário-fantasma. Mais de 36 apartamentos vazios. Já teve dias melhores. Quando abriu deve ter sido o principal da ilha. São quase 11h e a única forma de chegar dali ao centro de Soure é caminhar por uma hora sob sol intenso, ou chamar um mototáxi que me deixa onde eu quiser por 3 reais (cerca de um euro). O calor é infernal e não corre sequer uma leve brisa para atenuar a temperatura. O tecnhobrega ouve-se em todo o lado. Na praça principal de Soure ele sai das colunas de som de uma loja de material electrónico.

O melhor restaurante da cidade (o mais delicioso, dizem) está em obras. O único que está aberto tem peixe na chapa, farinha, arroz e CERPA. Está bom assim! Ligo à Cris. Depois de almoço vamos conhecer o curtume da família. Ela será a nossa anfitriã por aqui, numa parceria com o projecto de Ecoturismo de base comunitária que a Fofa do Turismo Consciente, de São Paulo, tem na região, articulando com a Estação Gabiraba. Hoje, toda a família da Cris, os Penante, ainda trabalham no curtume de pele de búfalo. Fazem as selas originais para muitas fazendas, sandálias, carteiras, chapéus.

A cultura do búfalo é muito forte na região e o animal, domesticado desde cedo, além de ser alimento regional – carne, leite, queijo, manteiga – é o meio de transporte mais utilizado pela maioria dos fazendeiros, pelos correios, e pela Polícia Militar. Dali seguimos para a Fazenda Araruna, onde se criam búfalos e onde a dona Amélia produz tudo o que o búfalo oferece. Ela é também a fundadora do Grupo de Carimbo Cruzeirinho, uma dança típica da região, inspirada nas culturas afro, indígena e no folclore português. Mas o Carimbo daqui é diferente do Carimbo de São Luís e de Marapanim. É mais lento e chega a confundir-se com o Lundu, que o Grupo Cruzeirinho também dança. Regressa-se a pé para o Hotel. Ao fim do dia o calor amenizou e a caminhada de uma hora deixa desvelar a importância da televisão em todas as casas (aliás uma constante em todo o Brasil. Os piores barracos, com as mais precárias condições de habitabilidade, têm a caixa mágica no centro da sala).

Às 20h, já noite, o Grupo Cruzeirinho começa o ensaio, que só começaria perto das 22h. Amélia deixa-nos no Hotel, depois… amanhã a tirania das 7h singrará e uma surpresa no quarto. Uma perereca maior que o normal no WC. Aquela pele a parecer escama de peixe (não se sabe muito bem por onde ela terá entrado, já que o WC é todo vedado e estava fechado) não deixa uma visão agradável. Depois ela resolve explorar os meandros do quarto em abundantes saltos irritantes, rápidos e imprevisíveis. Há uma perereca desaparecida no quarto… Maravilha!

30/09 – Dia 44. 6h da matina é demasiado cedo para se apanhar um barco. Melhor o das 15h, que teria uma ondulação forte certa, faria o barco balançar numa dança concertada esquerda-direita durante uma hora, e um enjoo fulminante que deixa e em suspenso a ideia: “e se ele virar?”. (Talvez tivesse sido melhor apanhar o da matina que o da tarde seria calvário certo). A estação das docas é uma área degradada, perigosa, e com olhares suspeitos.

Na parede uma fotocópia com a imagem de um homem. Lê-se: “Procura-se! Matou fulano de tal no dia tal e fugiu. Dá-se recompensa a quem encontrar”. Os olhos ficam arregalados. Depois da primeira percepção dar uma certa distância ao que está a ler, a segunda, a mais cauta e ponderada, digere analiticamente a ideia para a pesar e processar como deve de ser: procurado por assassinato. Depois de passar pelo detector de metais do porto das docas para o embarque, centenas de pessoas começam a apressar-se para o barco que fará a travessia: Belém – Porto de Camará, na Ilha do Marajó. Barco grande, precário, insalubre, com bancos de esponja falsa que endureceria, por três horas o nosso assento natural. São bancos únicos, em fila, escuros e desconfortáveis. Dois andares, e há um caixão que também vai embarcar. O homem de olhar suspeito à entrada do porto também embarca e vende uma peça de artesanato em ferro. Ele passaria, obcecadamente, dezenas de vezes pelos mesmos passageiros e a fazer a mesma pergunta: “não quer comprar?”.

Ao fundo, perto da proa, uma mulher começa a gritar a cada balanço do barco: a embarcação parece ter um íman que a mantém equilibrada ao centro depois de ser sacudida, violentamente, para um lado e para outro. Seria assim, durante demasiado tempo. E a mulher grita e enjoa. Há uma outra que se ri do episódio. É amiga dela. Vai-lhe buscar água (traz uma coca-cola para ela) e olha para trás a rir-se. Volta com a água e antes de se sentar, olha no vazio a rir-se. Um homem dá-lhe álcool para cheirar. A outra mulher ri-se, sempre. A Televisão passa um filme de comédia romântica.

Começa a chover. Os marinheiros deslizam as lonas para que a água não entre. O Barco balança, balança. E ainda falta tanto para o porto Camará. Ao redor a vegetação de ilhas imensas e rio apressado. Há um homem que dorme a centímetros de mim. As havaianas são as almofadas, e os pés de fora balançam de cada vez que o rio empurra o barco. Ferrado como bebé não dá por nada.

Três horas e meia depois, no Porto Camará, há pequenas carrinhas que querem engolir passageiros até Soure. Queremos a do senhor Edgar. São 30 quilómetros até Salvaterra, onde quase ninguém fica. Depois o “micro-ônibus” entra na balsa de ré e ploc, nem sentimos que a terra já se fez Soure. O Edgar deixa-nos à porta do Hotel Ilha do Marajó. Assim de repente, parece um Hotel-Fantasma, como se os únicos hóspedes tivessem acabado de chegar, depois de um farto período de abstinência. Pede-se a especialidade da casa: bife de búfalo, com queijo da búfula, cuja dose “dá para duas pessoas se comerem mais ou menos”. Quase uma hora depois, e uns goles de Guaraná e não se sabe se aquela amostra gourmet é uma entrada ou o prato principal, que no final ainda pesaria no bolso. Só que num raio de cinco quilómetros (e onde o único transporte é o mototáxi) não há mais nada… O estômago ronca na hora de ir para a cama. Não se sabe se de fome, se de sono.

29/09 – Dia 43. Ainda em Belém. Compras de última hora. Passar as fotos e o áudio para o HD. Amanhã é dia de Ilha do Marajó ( a palavra vem de Mbará-yó do tupi que significa barreira do mar) e o dia terá 3 horas e meia de travessia de barco.

28/09|Dia 42 – Preparativos para a maior festa religiosa de Belém: O Círio de Nazaré. 18h: há encontro marcado na Basílica. Até lá, a habitual, quando há algum tempo livre, escrita em dia. E ainda, preparativos para a Ilha do Marajó…

27/09|Dia 41 – Regresso a Belém. Acordar tarde e com o som do rio, a escassos metros da janela do quarto. Malemolência (essa palavra que só persiste ser folheada no português do Brasil e resume tanto) do calor, cansaço acumulado. Isto de ser “homeless” deixa as suas mazelas.

26/09|Dia 40 – Ilha do Mosqueiro, a 70 quilómetros de Belém. Os pais do Philippe têm uma casa de veraneio nessa ilha de rio que parece mar. Achou que dois portugueses abandonados precisavam de um tratamento de choque de descanso de churrasco, Brahma, tapioca, gelados de cuxi e bacuri , em versão dieta imprescindível.

25/09|Dia 39  – Mangal das Garças ao fim do dia. Dia de trabalho e partida para a Ilha do Mosqueiro com Phillippe e filhos: João e Ana Luísa. Enfrentamos o trânsito de fim-de-semana à saída de Belém. Mas quando chegamos à Ilha do Mosqueiro, a Lurdes, afinal não estava na casa para nos receber. E o P. não tinha a chave. Decidimos voltar no dia seguinte de manhã cedo. Mais uma hora de regresso a B.

24/09|Dia 38 – Dia de Museu Emílio Goeldi. Visita interrompida pelo dilúvio. Dia de trabalho. Dobar umas linhas.

23/09|Dia 37 – Dia de trabalho na Ecopousada Miriti. Site em dia. E mais uns quilómetros de letras nas estradas do Word.

22/09|Dia 36 -Dia de trabalho na Ecopousada Miriti. A Priscilla está a mudar as plantas de lugar e a completar a relva da entrada com o Gil.

21/09|Dia 35 – Acordar em Belém. O pequeno-almoço já sabe a casa. Já estava com saudades da família Barata e Bastos. Colchão fofo e água-quente. O calor das palavras. As histórias. E os doces da Nice que, agora, só olho de longe para recuperar desta alimentação difícil de uma semana na terra de feijão-arroz-e-carne.  Hoje é dia de pôr a escrita, o sono e a leitura em dia.

20/09|Dia34 – Ansiedade por sair desta terra tensa: Marabá. Ou como diz o taxista à chegada em Belém. “Marabala” a terra do faroeste, dos pistoleiros, das grandes fazendas, dos grileiros, jagunços e de gente que luta pela terra, porque é de lá e sofre por ela. Gente despojada, humilde, sofrida.

19/09|Dia 33 – O M. atrasou-se um pouco. Esteve a tratar de outros assuntos importantes. Saímos tarde para o acampamento. Ainda vamos buscar G. que veio de Palmares há duas semanas. Comemos algo na vila e estamos a caminho do Acampamento do MST. Gente com os olhos cansados, muito; desconfiada; vida amordaçada. A pressão e o sofrimento pela luta pela terra deixam marcas como estas e um medo colectivo. Ameaças, companheiros baleados. O I. já levou seis balas, está a recuperar-se. Outro I. já fez trabalho escravo mas conseguiu fugir. E a dona A. preparou um saco de amendoins para oferecer. Saímos tarde de lá. A estrada é péssima, sem luz. Mas M. conhece-a bem. Já não sabe quantas vezes a rodou, várias vezes por semana, há anos. Há um carro capotada na berma da estrada. Luzes. M. salta do carro para tentar ajudar, mas não há ninguém no carro. De repente saltam dois homens do meio do mato. Passa um camião. Uma moto com um casal. M. e G. correm para a nossa “pickup”, arrancamos violentamente sem olhar para trás.

18/09|Dia 32 – Entrevistamos Me. e G. sobre esta luta sofrida pela terra. C. vai estudar para Coimbra, fazer um doutoramento sobre questões agrárias. Talvez seja hoje que viajaremos com M. para o acampamento. Mas a meio da manhã não será possível. Ele tem outras prioridades antes de se fazer à estrada. Amanhã, com certeza. E mais um dia de espera.

17/09|Dia 31 – Dia de imensa espera pelo telefonema que não vem. A fome aperta e ao redor só lojas comerciais. Na grande Avenida da “Nova Marabá” há dezenas de lojas de pneus, mecânicos, recauchutagem, quatro bombas-de-gasolina seguidas, insalubres, esgoto a céu aberto e nada para comer. Há uma loja de roupa de luxo, ao lado de um supermercado popular e churrasco de frango. Só

16/09|Dia 30 – A Funai não confirma ida à aldeia. Lula mudou a agenda. À boca pequena diz-se que “por razões políticas”. Mais um dia no “faroeste” que recebeu a primeira chuva de Setembro, trazendo vendaval, arrastando árvores e chuva-dilúvio que revolve a terra vermelha em lama-lama-lama.

15/09|Dia29 – O rádio da casa do Índio tenta contactar Aikibóro que nos confirma transporte para a aldeia. Alguém diz que não. O pó de Ourilândia  do Norte não assenta. O garimpo há muito se foi, mas a herança da terra ainda o é. Sem lei.

14/09|Dia 28 – Tudo é demasiado lento, por agora. Transportes que saem sob lotação, sem horários. Esperamos que a Funai nos confirme transporte para a aldeia indígena, amanhã.

“Duvido”, diz C.

Lava-se roupa. Passa-se imagens para arquivo. Mais um dia de espera na terra seca, árida de Ourilândia do Norte. Cidade-fantasma com poeira levantada, calor tórrido, insuportável, sufocante. E muitos camiões que transportam gado.

13/09|Dia 27 – Seis horas da manhã. A rodoviária de Xinguara fervilha. Sem sombra o solo arde, o calor queima. A carrinha que sairia às 06h30 saiu há dez minutos. “Veio de Marabá e como vinha lotada o motorista foi -se embora mais cedo”, diz o responsável pela empresa.

12/09|Dia 26 – Belém – Marabá: uma hora de voo. O autocarro partiria às 15h30 da rodoviária. Afinal será entre as 16h e 17h.

– Tem ar condicionado?

– “Quando não está quebrado tem”, responde o homem do guichê.

– “E esse que vem de Belém?”

– “Ah! Esse está com problemas.”

Café e sanduíche para enganar a fome.

Carrego o telemóvel e o crédito não entra. Venho a saber que entrou noutro número de telemóvel. Às minhas custas, alguém lucrou.

– “O seu número de celular deve ter sido clonado”, diz a empregada de mesa.

– “Querida, e como vamos resolver se você me vendeu um cartão de carregamento de celular com número de série viciado?”

– “Não sei não. Ligue para a TIM, eu não tenho nada que ver com isso”.

17h00 – o autocarro chegou com problemas. Vai ter de ir para a garagem.

Não há previsão de saída e não há mais nenhum para substituir o “ônibus quebrado”.

O homem do guichê insiste que não nos deve satisfações. Acha que o “ônibus deverá sair” dali a uma hora.

O meu problema do crédito que não entrou não está resolvido. A gerente do bar onde comprei insiste que o problema não é dela. Tenho cinco empregadas a olhar para mim, de esguelha. E continuo ao telefone com a minha operadora para resolver o problema. Da primeira vez que liguei para  o serviço atende-me uma mulher a dizer : “Oi, amor”.

Ok, realmente o cartão deve ter sido clonado, ou a minha operadora está com problemas no serviço. Insisto com a gerente. Argumento num bem disfarçado “português do Brasil”. Ela acaba por me devolver o dinheiro.

O autocarro continua sem previsão para arrancar para Ourilândia do Norte. A última carrinha até meio do caminho, em Xinguara, acabou de sair há um minuto; e ainda vai passar pelo outro terminal rodoviário. Há esperança de que volte para trás? Afinal, não é terra em lei? Conseguimos convencer a mulher do guichê que queremos “muito” ir para Xinguara e que precisamos de três lugares. São precisamente os que a “van” (a carrinha) ainda não preencheu. Pedimos o dinheiro de volta na empresa do “ônibus quebrado”. A carrinha voltou para nos vir buscar e seguimos pela estrada meio-asfalto, meio-terra batida, com queimadas e gado ao longo de um cenário desmatado.

22h. Chegada a Xinguara. Pernoite por aqui. Opções para dormir: uma pousada duvidosa inacabada com obras. Cheiro pestilento nos quartos. O dono insiste que não vamos encontrar melhor. Eu e a Célia atravessamos a rua. Há outra pousada lá ao fundo. O cenário pode sempre piorar: esta parece uma cela solitária. Tem marcas de mosquitos e outros bichos na parede. Cama encafuada num cubículo. Casa de banho (era mesmo?) com a porcelana tingida de mijo e chuveiro (seria mesmo?) com a laje manchada de terra. À terceira, sabemos, é sempre de vez: a pousadinha seguinte seria mais honesta. É mesmo por aqui!

11/09|Dia 25 – Em Belém, na ciranda do trabalho e dia de revisão de mantimentos em falta. As mochilas rebentaram. Alças irrecuperáveis e fechos cansados, já.

10/09|Dia 24 – 7h da manhã. O barco sai para Fortalezinha, comunidade de pescadores a 40minutos de barco da Ilha do Algodoal. Lá encontro o pedaço de uma nota de cruzados. Há botos no caminho. Caminhada sob sol tórrido. Os ombros desta vez ficam queimados. 12h voltamos a Algodoal. Tenho uma hora para ir à Pousada Marhesias (20 minutos de caminhada desde o porto de Mamede – não esquecer o sol tórrido) e voltar para apanhar o último barco para Marudá e ainda hoje chegar a Belém.

13h15: chamaram uma carroça. As malas e as costas e os ombros queimadas não suportariam o peso; e o tempo corre em areia fina na ampulheta. O barco está lotado. Cabem 32. Leva 45 pesssoas. Um grupo sorrateiro improvisado fez-se em pé à proa. Um pescador que viaja com a família está preocupado. O motor parece estar em sofrimento a puxar.

-“Este barco está muito pesado”, diz. E começa a distribuir os coletes salva-vidas pelas filhas e esposa que coloca as mãos ao peito e reza sempre que o barco balança de mais. A água está a três palmos do barco. Se o vento estiver mais forte no canal a água vai entrar.

O pescador fica agoniado. Todos estão em silêncio e olham para o meio do barco cheio de malas, sacolas e mochilas. O barco está pesado. Quase se engolfa demais na água…Chegamos a Marudá. De imediato para o “micro-ônibus” que nos levará numa viagem de três horas, em assentos apertados e mochilas no colo, ao som de música brega, sertaneja e duplas de vocais tipo Leandro e Leonardo. Só pára para deixar e recolher passageiros. O sono vem. A cabeça mergulha na mochila ao som de qualquer coisa. O silêncio não é importante por agora.

09/09|Dia 23 – 9horas.  Café e bolo de alguma coisa que não se percebe. Está bom assim. Muda-se as malas para a Pousada Marhesias. Conversamos com o Bergo, pintor, belenense e dono da pousada, junto com a esposa, Paula, descendente de portugueses. Bergo faz parte da Associação de Preservação Ambiental da ilha. Há muitos problemas de lixo. Como dar destino a tanto que se produz por lá? Saímos para fotografar. Temos de dar a volta no mangue para ir até à ilha da Princesa. Os pés enterram-se em areias movediças. A água sobe até à cintura. A praia parece tão perto, mas a caminhada é desértica. Árida. O pescador passa com peixe no balde, apressado. Ao longe, estacas para pescar. Chegamos ao La Dune´s Drink onde está José Cristo. Mora na ilha “desde o início”. Diz que até já falou com a Pricesa, a da praia. Um espírito que guarda o arenal mais famoso de Algodoal. Brinca que ela está sentada na cadeira vazia que vemos em cima da duna. Come-se peixe. Bebe-se “suco de goiaba”. Galgamos a areia de novo, centenas de metros. E descobrimos como se chega até à Lagoa da Princesa com águas cor de mercúrio das algas. Ao regressar o pôr-do-sol já se esconde nas estacas ao longe, na água. Há vegetação enterrada na areia. A maré subiu. Para passar para o outro lado apenas a um real num pequeno barco.

08/09|Dia 22 – Ilha do Algodoal. A maré está baixa. O sono é muito.

07/09|Dia 21 – Curuçá – Marudá. A Suani não nos quis deixar. Deu-nos boleia de Curuçá, onde fica a “Casa da Virada” do Instituto Peabiru onde trabalha, até Marudá para apanhar o barco até à Ilha do Algodoal. Saiu um às 13h30 e levará apenas dois passageiros mais a tripulação. É feriado da Independência, por isso o fluxo é contrário ao que seguimos. O céu fica cinzento. São 50 minutos de ondulação e vento forte. Há um barco que navega do lado que acha piada ao facto de apenas irem dois passsageiros. Apesar do vento, da maré forte, e das ondas que teimam em entrar no barco ,quem vai ao leme da outra embarcação acha que não é suficiente. E resolve aproximar-se ainda mais. Assim que a onda vem ele entra mais forte nela e manda-nos um banho salgado que molha as mochilas, o corpo, os óculos, os pés, e até a irritação. Sabemos que foi propositada a peripécia, mas ok…Depois disso afasta-se. E ri-se.

Já no porto de Mamede, na Ilha do Algodoal, saltamos para a areia. Procuramos pousada e ainda está tudo cheio. Esperamos improvisados na da Chilena onde a sombra não deixa dúvidas para não prosseguir. Só às 18h haverá vaga. São 14h30. No frigorífico só restam dois sucos de caju e 4 fatias de bolo “estragado”, como se chama ao bolo de tapioca mal cozido. A fome pede isso, portanto. Duas horas depois haverá vaga. Um cubículo básico partilhado com mosquitos, formigas e aranhas simpáticas, sem luz na casa-de-banho: ah, eufemismo da palavra cubículo.

06/09|Dia 20 – 7horas. Em Curuçá. Entrevista com o senhor Cristovam, que hoje regressa da pesca com o filho mais novo, o Júnior. Conta-nos histórias de mar e peixe. E diz que sim. Pescar é uma aventura, mas nada como “dantes”. As grandes empresas estão “a dar cabo das espécies”. Ele é, ainda, um dos resistentes. De jeitinho artesanal, corpo atlético e olhar moreno.

10h voltamos para a Casa da Virada, do Instituto Peabiru. Mel de abelhas nativas à tarde, depois de almoçar no senhor Mecenas: carne, frango, ou peixe? Pela terceira vez, peixe, por favor.

À fim da tarde, cerveja em Abade – essa comunidade onde, também, os Jesuítas andaram, ali no século XVII, a “evangelizar os povos da Amazónia”.

À noite. Experiência verdadeiramente antropológica. Aparelhagem: o Techno brega no seu melhor. Melody Ice com “Gatinha, você gosta mais de Red Label, ou Ice?”. Alto e bom som, o dono do carro, com as colunas em alto som controla o volume com um comando enquanto está sentado na calçada.

05/09|Dia 19 – A ilha da romana é uma praia selvagem. E a dona rosa não mora mais aqui. Agora não há tanto peixe como dantes. “As grandes empresas estão a roubar todo o nosso peixe”, diz.

04/09|Dia 18 – Depois de 20 mil caracteres a caminho de Curuçá, pertinho do Atlântico para ir à Ilha da Romana.

03/09|Dia 17 – Dia de hibernar para pôr a pena em dia…

02/09|Dia 16 – Boa Vista do Acará com a Estação Gabiraba, depois de partir do porto da Palha, nos arredores de Belém com direito a gastronomia local e banho-de-cheiro.

01/09|Dia 15 – A actualizar site e nas lides do teclado para aquele bordado luso-brasileiro que se cose a palavras, com agulhas de pontuação…

31/08|Dia 14 – Belém dia de labor…

30/08|Dia 13 – Belém, no Xícara da Silva, com Gilberto, Priscila, Filipe e amigos para a despedida do Chris que voltará para França. Experimenta-se uma das especialidades da região, pelos vistos: pizza de camarão com jambu – essa erva que deixa aquela leve dormência na língua.

29/08|Dia 12 – Dia de labor…

28/08|Dia 11 – O avô do Tiago fugiu de Portugal e fez outra família na ilha de Cotijuba. Ele diz que um dia há-de ir a Lisboa saber se tem parentes.

27/08|Dia 10 – Cotijuba. Dormiu na rede dona Célia em Cotijuba, embalada pelo rio que se ouve mar; folhas esvoaçantes a beijar a areia-fina-farinha que parece gemer… A dona Célia disse que viu as duas luas que tanto se andou a falar. A rede embalou de tal forma que só em sonhos a terei visto, provavelmente.

26/08|Dia 09 – Belém é refúgio de trabalho. É dia de pôr a escrita em dia. E o olhar.

25/08|Dia 08 – Amanhece quente. O Filipe Bastos vai levar-nos a conhecer os projectos da Secretaria de Meio Ambiente de Ananindeua. O barco espera-nos para a casa de Farinha-Quilombo… Para Igarapé Grande e para a Ilha de santa Rosa, onde Dona Ambrósia, 99 anos, amassa açaí com as mãos, dá uma lição sobre as ervas milagrosas e Gilberto, o caboclo relembra um pouco que o avó lhe ensinou. “No tempo do meu avô dizia-se”, ele recorda, sempre que vai contar uma história. Mas já não se lembra dos pormenores. “A tradição oral e das gentes daqui está-se a perder”, admite Bastos.

24/08|Dia 07 – Ontem acordei com um barulho no telhado da casa  dona Goretti. Impulsiva como sou nestas lides de barulhos estranhos vou logo ver o que se passa, quase de vassoura na mão. “Seu” Joca disse que era mucura, ou seja isto: http://www.saudeanimal.com.br/gamba.htm

Saímos para comer qualquer coisa. Come-se caju e carne na casa de seu Joca. Depois, a caminho de Belém…

23/08|Dia 06 – Marapanim. Carimbó. Entrevistas no Grupo Flor do Mangue. Ritmo e dança, onde até o folclore português fez das suas…

22/08|Dia 05 – Hoje: Marapanim. A capital mundial do Carimbó?

É lá que estão os grupos de Carimbó mais emblemáticos da região. A dona Goretti, mãe da Priscila, vai-nos emprestar o alpendre para o sono… Chegamos para a inauguração da Casa do Carimbó.

21/08|Dia 04 – Programa de festas para a tarde: Mercado Ver-o-Peso e Forte dos antepassados, onde se pariu Belém… Há qualquer coisa vento-baço que se cola à pele, bem antes da humidade se entranhar. O Amazonas lê poros para se agarrar aos viajantes…

20/08|Dia 03 – Tambor de Mina: já ouviram falar? Tem o Marquês de Pombal, Dom Sebastião e três princesas turcas encantadas. Isto é sincretismo amazónico.

19/09|Dia 02 – Há qualquer coisa em Belém que faz lembrar o Rio de Janeiro. Talvez estas longas ruas com casarões coloniais que Portugal por cá andou “fazendo”…

18/08|Dia 01 – O resto das malas foi atirado para a mochila. O senhor Salu está lá em baixo. Cheira a despedida…Sampa quase chove!

Ângulo de 30 graus (?) sobre o rio (cor-de-gesso-baço-barrento) Amazonas e verde texturas ponto-de-cruz do céu. SinaisDaGente já em Belém… Picz. A primeira picada. E isto porque estou de casaco. Sugestão do A.: comprar repelente em creme e outro em spray para andar na bolsa…

Subornos, desmatar

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Outubro de 2009

roadmarabaPublicado no DN a 18 Out’ 2009

Quatrocentos quilómetros de Marabá a Ourilândia do Norte: as grandes empresas de mineração e celulose devastam o coração da selva amazónica. Os fogos multiplicam-se um pouco por toda a parte

A Célia está revoltada. Olha incrédula para o vale nu. Aproxima-se da janela da carrinha como se ampliasse o olhar para se certificar de que está a ver bem. Suspira “Meu Deus!” baixinho. “Há dois anos tudo isto era mata”, murmura, enquanto olha as bermas da precária estrada PA-150 que liga o Nordeste do estado do Pará até ao sul, no Brasil.

Partimos de Marabá até Ourilândia do Norte: 400 quilómetros. Até lá é preciso dormir em Xinguara e apanhar outro autocarro no dia seguinte. Célia continua a falar baixinho: “Não se sabe quem vai” na carrinha. “Esta região está toda desmatada. Só se vê bois e grandes fazendas. E as grandes empresas de mineração e celulose estão a devastar a área com o consentimento dos governos locais”, diz Célia ao DN. “Quem os denuncia corre risco de vida. É preciso falar baixinho.” Célia Maracajá trabalha na Fundação Curro Velho, em Belém, uma ONG que promove a cultura regional. Ela já galgou muito a Amazónia a fazer documentários para o projecto “TV, Navegar Amazónia”, do cineasta brasileiro Jorge Bodanzky. Já falou “alto” para denunciar, fez reportagens e campanhas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o mesmo do Presidente Lula da Silva. E já teve o nome na lista negra de alguns políticos na região. Conhece as lutas e o suor que sai do corpo de “muita gente”, para “salvar” a Amazónia. O desmatamento continua a ser uma “doença crónica”, mas a “pistolagem” também (“são homens armados que matam para calar”). “Esta é uma “Amazónia que não vem nos guias”, ironiza. Célia está a caminho de São Félix do Xingu, mais a sudoeste, por causa da homologação da terra indígena Moicaracó, de etnia kayopó. Ainda não sabe como vai chegar até lá. E o Presidente Lula da Silva ainda não confirmou. A carrinha que a leva até meio do caminho, em Xinguara, foi um “improviso”. O autocarro que iria apanhar avariou. Não havia outro para substituir. “Aqui é terra de ninguém, a lei é feita pelos homens e pela bala”, desabafa. Foi por essa “lei” que o cartão do meu chip de telemóvel brasileiro foi clonado. Comprei uma recarga de crédito que entrou noutro número. “Isso acontece”, diz o dono do bar que ma vendeu na rodoviária de Marabá.

À saída da cidade, o motorista da carrinha passa no “posto de fiscalização”. Leva quatro passageiros a mais, em pé. Ele pára, remexe no bolso da camisa e dá 60 reais (cerca de 20 euros) ao fiscal do posto que lhe deseja “boa viagem”. “Você percebeu?”, dizem, baixinho, os olhos de Célia.

Os camiões que passam vão cheios de gado. Não se pode falar sobre isso, nem sequer “baixinho”. Alguns camionistas vão acompanhados de miúdas com idade para serem filhas. Cheira a queimado. No meio da mata há pequenos focos de fogo. O fedor a carbonizado mistura-se com o de estrume no ar. O motorista aumenta o volume do rádio. Ouve-se o som da moda do Pará: o techobrega é uma mistura de música electrónica e caribenha com sons de órgão e batidas de baile.

Entram duas mulheres loiras com um cão chamado Harley. Os homens que vão na parte traseira da carrinha animam-se em sorrisos lunáticos e “bocas” atrevidas. O clima fica pesado. Anoitece. Há mais fogo na berma da estrada. O fumo tira a visibilidade e intoxica. A ponte que atravessamos está esburacada. Há tatus na berma da estrada, sapos a atravessarem-na e uma enorme cobra morta. Queriam fugir do fogo. Seis horas e meia de estrada para galgar 200 quilómetros e chegamos a Xinguara. A Célia procura uma pousada “decente”. A primeira tem escadas de tijolo, inacabada, quartos com cheiro a esgoto, bichos em festa no chão e o dono garante que não encontraremos “melhor”. A segunda tentativa: o quarto parece uma cela solitária, insalubre, com marcas de vários bichos mortos nas paredes. E a retrete do WC tem manchas coloridas que preferimos não saber o que é. Última hipótese para dormir: temos o “básico” e chuveiro com água fria. “Está bom assim”, achamos. É tarde, e na terra de ninguém não encontraremos “melhor”.

Vila Pesqueiro-Soure

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Outubro de 2009

Retratos Amazónia

Postado por Vanessa Rodriguesem 30 de Outubro de 2009

Círio de Nazaré

Postado por Vanessa Rodriguesem 12 de Outubro de 2009

ciriodenazarePublicado no DN, 11 Out’ 2009

Oneide Bastos já sabe, há muito tempo, que mantas colocar nas janelas da casa todos os segundos domingos de Outubro. “São as de renda, alvas, de família, que ponho há anos e que a Nossa Senhora de Nazaré já conhece.” Semanas antes mandou-as tirar da hibernação e arejar para as estender hoje. A procissão do Círio de Nazaré, a maior festa católica do Brasil, em Belém do Pará, não passa à porta, “mas começa perto”, a alguns passos dali, na Catedral da Sé, às sete badaladas matutinas. E a casa da vovó Oneide, como lhe chamam os netos, agora restaurada pelo Instituto de Património Histórico e Artístico Nacional, pois as paredes e as divisões sussurram também a história da cidade, é “há muitos anos referência em Belém”.

Olhos em regozijo, mãos cunhadas de 93 primaveras, Oneide diz ao DN que o Círio é, para ela, “o dia mais importante” do ano. E “o almoço de família”, depois da procissão, “o momento mais importante da festa”. Na casa dela há 26 cadeiras à mesa para comer o tradicional pato no tucupi, molho apimentado típico paraense feito a partir da mandioca amarela. Ao longo do dia, as cadeiras já serão poucas para receber os primos afastados e os amigos da família.

“Em Belém”, diz César Neves, um dos responsáveis pela organização das festividades de nossa Senhora de Nazaré, a padroeira da Amazónia, “o Círio é mais importante que o Natal”. A festa tem mais de dois séculos e é de origem portuguesa (ver caixa). Trocam-se presentes. Compra-se a melhor comida para o “grande almoço”. O fervor é “especial”, sobretudo, no estado do Pará. Há réplicas do Círio de Nazaré em quase todas as comunidades amazónicas da região. Em Curuçá, a 140 km de Belém, Joelma Santos engordou os patos para os comer hoje, e a família Penante enfrentou quatro horas de barco desde a ilha do Marajó para “ver a Santa”.

Na televisão anuncia-se há semanas que o Círio está a chegar: é “tempo de renovação da fé”. Nas ruas há cartazes gastos de semanas com a imagem da Santa. Nas bombas de gasolina, há pequenos santuários. E as farmácias vendem o kit completo: T-shirts religiosas, pulseiras coloridas e um ‘abanador’ para enfrentar o tórrido calor amazónico, que é também um calvário da romaria. Hoje, os quatro quilómetros de procissão entre a Sé e a Praça da Basílica é feita debaixo de 33 graus.

“Todos os anos é como se fosse a primeira vez”, conta Gilmar Cosme, o decorador da berlinda, o carro que leva a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, o mais importante do Círio, para onde todos os olhos convergem, pedindo em segredo que ela “acuda” às promessas. “A Santa tem de estar linda, para que o povo se identifique com ela. Se estiver simples, dirão que estava pobrezinha”. Ele promete que, este ano, ela estará “piedosa,” como “o povo gosta”, com “cravos, lírios e angélicas”. As festividades já começaram há duas semanas, os preparativos duram um ano. Só que hoje “é um grande momento para o mundo católico”, reforça Neves, que é descendente de portugueses. Ele já esteve em Meca, na Arábia Saudita, e em Fátima, no 13 de Maio, por isso garante: “O Círio de Nazaré é o maior fenómeno religioso do mundo”.

E hoje: lágrimas, pés descalços a pagar promessas, mãos levantadas para o céu, ruas apinhadas de fiéis que tentam chegar à corda que alinha a procissão. Na baía de Guajará, no delta do Amazonas a cercar a cidade de Belém, há dezenas de embarcações em romaria. Olhada do alto, a cidade parece ter milhares de formigas coloridas em terra e em água, que se acotovelam, choram, e pedem à Santa para que, no próximo ano, a possam ver de novo como se fosse a primeira vez.

http://dn.sapo.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1387062&seccao=CPLP

De PT para BR, com devoção

Postado por Vanessa Rodriguesem 12 de Outubro de 2009

ciriodenazare1De Portugal para o Brasil, com devoção

Publicado no DN, 11 de Out’

Quando no séc. XVII o caboclo Plácido, descendente de portugueses, andava pelas imediações do canal Murucutu, onde hoje está a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, e encontrou uma pequena estátua da Santa, não poderia imaginar que seria o fundador da principal romaria da cidade. Plácido resolveu erguer uma ermida. A Santa já era conhecida nas redondezas, depois de os jesuítas a introduziram, um século antes, na tradição católica do Pará. O “milagre” começou a atrair centenas de fiéis. Hoje, o Círio de Nazaré, é a festa católica mais importante do Brasil e Património Histórico Imaterial. A tradição conta que a imagem original da Virgem, entalhada em madeira, teve origem em Nazaré, na Galileia. No séc. XII a devoção chegaria a Portugal, como símbolo de fé do cavaleiro D. Fuas Roupinho que mandou erguer a Capela da Memória, para agradecer à Virgem tê-lo salvo de um acidente. Dois séculos depois, o rei D. Fernando fundaria o Santuário Nossa Senhora da Nazaré e, desde então, o 8 de Setembro é, na vila de Nazaré, a data da devoção à Santa, celebrada com as festividades do círio da Prata Grande.

Fim da pesca artesanal?

Postado por Vanessa Rodriguesem 12 de Outubro de 2009

fortalezinha

Publicado no DN, 4 de Out’

A ponte que liga a ilha de Algodoal à colónia de pescadores em Fortalezinha já não existe. Caiu “há anos”, explica o pintor Bergo, morador da ilha. “Nunca mais foi reconstruída.” A única forma de chegar lá é “alugar barco”, ou “apanhar boleia com um pescador”.

A região ainda preserva a pesca artesanal. As águas estão decoradas com estacas finas de madeira velha, armadilhas para o peixe e caranguejos, redes de pesca extensas e barcos pequenos com homens solitários que aguardam o melhor momento para as recolher. A poucos metros deste cenário, o canal que vai de Algodoal até Fortalezinha parece, ainda, virgem. Há botos a mergulhar – mamíferos parentes dos golfinhos – garças altivas a apanhar sol nas margens, floresta densa, e peixe que saltita.

Nisael dos Santos faz, muitas vezes, essa travessia. É presidente da Associação de Empreendedores de Turismo da Ilha de Algodoal e, todos os dias, recolhe as crianças das comunidades para levá-las à escola. Conhece bem as feridas da região. “Há cada vez menos pescadores. Estamos a tentar criar projectos de renda alternativa. Se não, tudo se pode perder”, diz.

Ilha de Algodoal

Postado por Vanessa Rodriguesem 12 de Outubro de 2009

aldodoal1Publicado no DN, 4 de Out’

O algodão que lhe deu o nome já se foi, há cada vez menos tartarugas a desovar nas suas praias e o lixo ameaça a ilha a norte de Belém.

Os barcos que vêm da ilha de Algodoal estão carregados de famílias. São precários, com tinta a disfarçar as fendas que a água sal- gada provocou. Voltam do fim-de- -semana, ultrapassam a lotação e deixaram lixo para trás.

As embarcações que saem do porto de Marudá para a ilha de Algodoal, no arquipélago de Maiandeua – na língua indígena tupi significa “Mãe da Terra” – a 150 km de Belém, no Brasil, estão vazias. Quase todos voltam. Quase ninguém arrisca ir. O tempo ameaça fechar. O barco tem dificuldade em atravessar o canal. Só carrega dois passageiros. Chove. 50 minutos depois de ondulação violenta já se vêem, no horizonte, dunas que parecem montanhas. Antes, dizem os mais velhos, viam-se também fibras brancas no ar do algodão-seda que deu o nome à ilha, em plena Amazónia Atlântica. Hoje, a planta “já não existe”, diz, com voz angustiada, Alessandro Ferreira, conhecido como Bergo, pintor e dono de pousada em Algodoal.

O porto da ilha, o Mamede, é a praia. À espera de ganhar dinheiro com a gente que chega de barco estão carroças puxadas a burros, o principal meio de transporte por aqui. Até à vila de Algodoal a caminhada faz-se sob sol quente, areia mole e que torna o périplo num cansaço contínuo de 15 minutos. Estender a coragem significa ir até à praia da Princesa, a mais famosa e palco de lendas, banhada pelo Atlântico. Será mais uma meia hora de caminhada: passar pelo mangue de areias movediças com água até à cintura e ver as armadilhas que os pescadores preparam para apanhar peixe quando a maré baixar. Tudo o resto é uma imensa solidão.

José Cristo, ex-pescador, e hoje dono de um bar na Ilha, com a filha Helena, diz que a Princesa, “a dona da praia”, gosta assim. Diz que já a viu, que “é loira e glamorosa”, um “espírito que poucos têm o privilégio de ver”, e que a seguiu, “há muitos anos, até à Lagoa” com o nome dela. “Ela não gostou e, nessa altura, a minha vida ficou problemática”, conta. Hoje, “a vida já se endireitou”. Cristo foi um dos primeiros moradores da Ilha e é um dos maiores activistas na preservação. Aponta, ao longe, para uns paus de madeira, envoltos numa fita institucional de isolamento, como nos filmes policiais. “Vê aquilo ali? Tem ovos de tartarugas que outros pescadores queriam levar para comer. Eu não deixei. Temos de preservar a Ilha: é a nossa maior luta.”

É que “a ilha de Algodoal cresceu desordenadamente”, explica Bergo, activista na implementação de um Plano de Manejo Sustentável para a Área de Preservação Ambiental da Ilha. Proliferam pousadas sem licença, turismo em massa e há “o grave problema de como tratar o lixo”. Aliás, um clássico em muitas ilhas ao redor de Belém. Uma das soluções, acredita Bergo, será a “consolidação” do plano que alguns moradores estão a tentar articular com a Secretaria de Meio Ambiente. “Mas é uma luta grande, porque não há consenso para preservar Algodoal.”

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