D. Ambrósia, filha de Santa Rosa, a ilha de Bacabas

Postado por Vanessa Rodrigues em 30 de Agosto de 2009

donambrosia

Publicado no Diário de Notícias, 30 de Agosto 2009

O som do motor do barco parece que vai estourar a qualquer momento. Ronco contínuo, ensurdecedor. É melodia de progresso em águas amazónicas. Transporte “abençoado”. Se o desligarem, só se ouve o ondular das pequenas ondas no rio Maguari, em Ananindeua, no norte do Brasil. É a terceira cidade mais populosa da Amazónia. “E uma das mais pobres”, diz Filipe Bastos, secretário do Meio Ambiente da região. Ao redor, as pequenas ilhas parecem pequenos puzzles verdes. Vêem-se redomas de igarapés, esses braços estreitos de rios da bacia amazónica, labirínticos. As raízes grossas e espessas estão secas das margens. “A maré está baixa. É a melhor hora para navegar”, comenta Gilberto Sousa, o Gil da comunidade de Igarapé Grande, em Ananindeua. E há águas de mar Atlântico que também se desviam para aqui, trazendo o camarão. Há caminhos de ribeiros, monótonos, pintados pela natureza em irmandade gémea. Gil, diz que não, ri-se, assegura que nenhum se repete. “Conheço-os desde pequeno, e sei dizer onde eles nos levam.” Aponta para um: “Aquele vai para onde eu moro, mas este barco é muito grande para passar.” É ele que vai ao leme. Pele morena, mãos enrugadas. Sabe que no próximo emaranhado de raízes tem de contornar à esquerda para chegar à ilha de Sta. Rosa, onde fica a comunidade do Cajueiro.

“Foi nestes ribeiros que se esconderam os Cabanos [no século XIX] e ainda hoje encontramos túneis com moedas antigas e louças daquele tempo”, conta. Refere-se à revolta de negros, índios e mestiços contra a elite política no Pará, por causa da pobreza que carcomia as populações ribeirinhas, depois da independência do Brasil, em 1822. “O meu bisavô era português, apaixonou-se por uma cearense, casou-se, teve onze filhos e depois nunca mais souberam dele.” Uma hora depois, saberemos que “Bacaba é um fruto maior que o Açaí”. Quem ensina é Dona Ambrósia, 99 anos, descalça. Olhos azul celeste, mãos finas, cavadas pelo tempo e que, recorrentemente, encostam à boca depois da gargalhada. “Esta casa tem mais de cem anos, já cá estava quando eu nasci. Mexi muita farinha. Mas já não tenho mais força nos braços”, recorda a quase-centenária, enquanto ajeita a lenha por baixo do forno. Hoje, só ela e a filha ainda preservam, na comunidade, a tradição de preparar a farinha de mandioca. Distribuem pelas dez famílias da ilha. É a mesma que vamos comer daqui a pouco, na casa dela, para misturar com o açaí, o fruto cor-de-vinho colhido de manhã cedo, amassado pelas mãos centenárias – e que faz inchar o estômago – acompanhado de camarões que o filho apanhou há instantes. “Quando era mais nova subia à palmeira para colher o açaí”, conta. Depois levava esse fruto do tamanho de uvas americanas no barco, para vender na Ilha do Mosqueiro. “Demorava quatro horas a chegar, remando. Hoje já há barcos a motor. Naquele tempo era mais difícil”. E naquele tempo havia lendas. “A do homem galanteador de chapéu que encantava as moças e ia embora antes de a festa acabar. Dizem que era um boto”, conta referindo-se ao parente do golfinho da Amazónia. E apressa-se a contar a lenda da cobra que ficou na barriga da mãe do sogro depois que ele nasceu. “Chamaram o pajé, o chefe dos índios, quando a região ainda tinha índios, e ele fez umas rezas, uns cânticos. Só sei que ela ficou melhor.”

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