O mundo começa aqui. Sem coordenadas reais. Com bússolas que sentem. Azimutes desalinhados, que se seguem pelo som do vento, o gosto das águas, e o abraço das gentes. O mundo começa aqui num grão de areia. Numa viagem de mil viagens. Num alfabeto reinventado: com ar nas veias para levitar. Com rasgos nos olhos para ver mais perto. Almas, cheiros, paladares que se entranham nos poros e reentrâncias carnais como lente raio x. Não existe?
É aqui onde começa o mundo. Como oxigénio. Fotossíntese. Como raiz entranhada que esventra a terra. Desejo carnal que se enrola com a vida, sem medo de se trair. Trair é enterrar os pés e esperar que o mundo venha. Antes ser pó, que sonho por fazer.
O mundo não existe. Ele é. Obra de arte como as viagens que se pintam em nós… Quantas pinceladas tem uma viagem na alma? As interiores sem latitudes. Quantas mãos amassam a terra para ser? Quantos lugares que se impregnam em nós, antes de saber que existem? Sabem a açúcar em ponto de rebuçado. Adrenalina. Cabelos brancos que escondem histórias. Bilhetes deixados. Mesas velhas onde se roçam os copos. Acasos desencontrados.
O mundo é casa sem-tecto por onde se vê o pôr-do-sol. Por onde se reinventam as manhãs. Vidas que não passamos por um instante que o segundo mudou. Vivências. Rugas. Papel seda que se enrola à mão, macio. E se desfaz em combustão lenta. Fogo? Terra? Ar? Água em queda livre que se escorre e descobre em texturas com gotas microscópicas. Sabias que as gotas a pele não absorve? Sentem intensamente para roubar o que não interessa.
O mundo começa com lágrimas em busca de oxigénio. Sustem a respiração – o líquido ainda escorre. E o mundo é sémen que pare um filho: dois, mil, nove… É rasgos aflitos e embalos de neuroses. Sem tempo. Quanto tempo existe mais? Quantos fios por onde se escorre existem? Miragens. E o meu é “lente-ampliada-olho-de-peixe” que vê salgado com um travão adocicado. E entra nos poros da pele para ser mundo a acontecer…
Pega na fruta e rasga-lhe a pele . Lambe os dedos como se resgatasses um vida. Das sete que te dão, para multiplicares. Porque o mundo é berço onde começam as pegadas. E o olhar é gesto abnegado…Como o fogo quando arde até ao fim. Gasta-te. Bebe seiva das palavras que te dão. Redescobres em cada homem um alfabeto. Dicionário sentido para decifrar, sem reedições e risco de perda de memória. Amnésia colectiva para recordar.
A rota é homem em cada quilómetro. Rendidos ao embalo do rio. Espero por mim em cada porto de homens. Em cada mão com agruras que cosem o sustento em linhas bem dobadas para ser, antes de remendar. Se cada homem for trapo, então o mundo é manta que não cobre ninguém.
O mundo começa assim, sempre aqui, no ponto onde estamos. Onde os acasos acontecem porque seguimos viagem, provamos o suor e o cheiro ácido dos outros que nos adocica a vida. De cada gota que sai do corpo que se transforma em grão-de-açúcar. O mundo começa assim. Quando se arregaça as mangas, como prisões de (a)braços que querem sê-lo, porque escondem histórias que só aos quatro elementos sussurram. E esses nunca lhas podem roubar. Apenas ouvir como velhos confidentes.
Por isso, o mundo é livro que nunca folheamos até os sentidos decifrarem os sinais e aprenderem a olhar as páginas em branco onde se escrevem as memórias .

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