(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)
Não chove há duas semanas. Há qualquer coisa de vento pegajoso que se cola à pele, antes de a humidade se entranhar no corpo, nos olhos, no cabelo, até o suor deslizar abundante, sem secar. Depois, há qualquer coisa de verde espesso que se vê ao longe, assim sentada no Forte do Castelo, onde nasceu Belém, a do Brasil português, recortado por espaços de luz, que parecem portas sulcadas na vegetação, e por onde o rio Amazonas, cor-baço-barrento, respira de alívio, dispersando-se no delta, engolfando-se em outras águas fluviais, depois de milhares de quilómetros a perder-se em leitos lentos e caudais sinuosos.
Não se estranha, por isso, que quando ele também aqui chega, fraco, quer seja porta de entrada para a Amazónia profunda quer seja rio a desaguar na foz, antes de encontrar o Atlântico, leia poros de pele, para se agarrar a nós de gente que são mundo desta Cidade Morena, de mesclas de peles, feita de seduções forçadas há quase quatro séculos, entre portugueses e os índios Tupimunbá.
E, agora, só os abutres negros planam sobre a baía do Guajará, ao fim da tarde, sob o porto de Belém, à procura do cheiro acre de peixe, depois dos restos de pesca nos barcos ancorados, precários, numa dor de cabeça para a fiscalização, enquanto os botos-cinza ali na água, parentes dos golfinhos, vêm à tona para respirar.
O barco de ronda da polícia militar rasou-os. O caboclo que lava o corpo já não os viu, mergulhou e nadou até ao barco Jesus de Nazaré. A espanhola de visita não sabe o que são, e pergunta ao Ricardo, que guarda o forte, a olhar o mercado Ver-o-Peso, até o Sol se pôr, todos os dias. E, ao longe, esse sol, já desce o horizonte dourando as águas barrentas, enchendo-se de laranja-cor. Ricardo diz que o sabe imaginar fielmente se fechar os olhos, e que a pior altura para o admirar é no Círio de Nazaré, que a cidade anda a preparar para daqui a oito semanas, quando a maior festa religiosa de Belém enche as ruas de incenso, barracas com frituras e churrascos improvisados, numa traição consentida aos sabores e cheiros que a fazem amazónica.
Durante o ano ela é português reinventado na gastronomia, nos frutos, na língua, como a raça de mil raças daqui: tapioca, cupuaçu, buriti, açaí, bucuri, priprioca, andiroba, graviola, tacacá, tucupi, maniçoba. Quantas linguagens dentro da linguagem? Quantos gingados de pronúncias tem o português?
O Henrique Valente não sabe. Ele que já mistura o de Portugal com o do Brasil há 40 anos. E já chega: vai voltar a Portugal assim que vender a fazenda em Macapá, no estado amazónico do Amapá, a 24 horas de barco daqui. Não é mais a Belém que conheceu. A de hoje é violenta. Cresceu desmesuradamente. Tem mais de um milhão de habitantes e os tentáculos urbanos fizeram brotar arranha- -céus, ao lado de casarões coloniais e praças planeadas pelos senhores da “Lusitânia Feliz”, quando aqui chegaram.
O progresso crava problemas sanitários de águas de lodo ressequido nos passeios, insegurança, prostituição infantil e tráfico de mulheres para a Europa e países da fronteira amazónica, sobretudo a Guiana Francesa.
Andy Vale conhece os meandros. Ela que quase morreu afogada no Amazonas, depois de o barco em que seguia se ter afundado, em 2001. Esteve dezasseis horas presa pelo cabelo a galhos num ribeiro, até ser resgatada pela Marinha brasileira.
Embarcações precárias são “normais”. Negócios duvidosos também, e que o vasto caudal amazónico esconde, entre hidrovias e redutos de emaranhado de selva, sem pôr do Sol. E o que se perde no horizonte agora já não vê o “Peso”.
É meio círculo velado entre nuvens baças em despedida lenta: laranja fluorescente forte, recortado, como quem diz que amanhã, afinal, também não chove.

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