Arquivo de ‘s tomé príncipe’ Categoria
ilha léve-léve
Vestida de verde opulento, bananeiras, mãe de cacau e café das roças, São Tomé é ilha fértil, paradisíaca, de generosa gente e tempo suspenso. Praias desertas, tropicalidade e savanas a tombar em mar; de um crioulo adocicado a agarrar linguajar português. Ainda respira contrastes, de terra social por cumprir, num lento caminhar de autonomia. Mas quem lá vai, atestamos, fica, assim, léve-léve! LER MAIS EM ALMA DE VIAJANTE
cacau-doce
[crónica]
Negritude é pele grossa, que adensa o calor e suaviza a humidade tropical quando nela assenta. E a pele tem camadas mais porosas, como a dele. De uns alvos dentes, luminosos: contraste com esse manto de derme tropical. Pele chocolate. Alexandre, dos Santos.
Apresenta-se: que é tudo que tem para dizer, antes de começar a dizer. Gostamos de antecipar o fim, no princípio de começarmos. E mal acabamos de chegar: o início da ponte ainda está lá ao fundo, quando realmente começa a acabar a roça Agostinho Neto, nesta São Tomé mais a norte de ilha.
Uma filha, Xandinha. Alexandre 21 anos num corpo de homem feito.
– Ligaste o microfone? Está ligado?
Sim, ligamos. Podemos gravar? Uma conversa. Queres ouvi-la, depois? Um bocadinho? Ver como fica a voz no gravador?
Adensa as palavras e repete-se: “muito, muito, muito”. Talvez falasse do sol quente, da brisa impertinente a soprar-lhe no corpo; cruza os braços, endurece o olhar; sacode o ar (“sim, a vida aqui é muito, muito, muito difícil; e rico não quer saber). Vai ver se consegue ir na roça, ainda. Vai ver se consegue dobras para ir logo, na discoteca. Dançar funaná?
– É, sou filho de cabo-verdianos, adoro funaná.
Quer saber-me: tens filhos? Onde moras? Como está lá a tua terra?
Não acredita em crise. Lá, na minha, terra, acha, será sempre melhor que a miséria: corpo com sol quente na roça, mãos endurecidas de enxada, pés duros de caminhada. Que europeu sim, vive melhor. Que um dia hei-de ter filhos. Que devo morar num lugar bonito. E o resto Alexandre? Cidade é coisa violenta: para a cabeça, para a alma, para uma vida acelerada. Queres mesmo saber-me?
-Já te vais? Prazer em conhecer-te. Até uma próxima, quem sabe.
Véspera de regressar à cidade, ao meu país, para lá, a minha terra, a da crise. Pequeno-almoço:
-Tens uma pessoa à tua espera na recepção do hotel.
– Desculpa ter vindo assim sem avisar. Queria ver-te uma última vez. Posso nunca mais te ver. Desculpa-me.
Não há nada a desculpar nos genuínos gestos de ternura. Leves de abnegação. De princípio de vida, quando achamos que ali é um fim. O princípio de vida é quando achamos que ela terminou. Está ali, depois de vivência. E alguém a esperar-me numa cidade desconhecida, no meu corpo de passagem, itinerante, é sempre recomeço. Sempre, parece, chegamos ao lugar onde nos esperam, em genuínos gestos, bonitos, leves, abnegados. De gente a gostar de gente só porque sim.
– Queria dar-te um presente da minha terra. Mereces. Para que lembres. E não esqueças.
É que lembrar e não esquecer são primos muito afastados. Podemos tropeçar sempre num e falhar outro.
É quase noite. Já é logo. O fim do dia, quando príncipio de outro está mesmo, quase, “muito, muito, muito” a começar. Começamos?
– Vim da roça de propósito para te entregar. Desculpa ter chegado atrasado. Não posso ficar muito tempo. Pedi ao meu puto para ir buscar cacau à roça, para ti. E esta escultura fui eu que a fiz. E desculpa, estou envergonhado. Pedi à minha irmã uma saca. E ela pôs o cacau nesta de peixe. Estou constrangido.
– Vieste de propósito entregar-me isto, de longe, sem me conheceres. Já te disse e agradeço: não se pede desculpa por genuínos gestos de ternura e afecto. Eu não sei como te retribuir. Muito Obrigada.
– Um dia, eu sei, irei a Portugal. E vou-te procurar: até ao inferno, ao céu, ao fim do mundo, onde estiveres. Mereces.
Vanessa Rodrigues
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