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MST luta pela terra
“Preferimos morrer a desistir de lutar pelo direito à terra”
Por Vanessa Rodrigues, Marabá
A desconfiança reina na sede do MST em Marabá. Talvez porque muitos “companheiros” vivam sob ameaça de morte.
A polémica estrada transamazónica, que corta a cidade de Marabá, no Sudeste do Pará, no Brasil, passa em frente ao hotel Porto Bello. Ao redor, bombas de gasolina, mecânicos, terra cor de cobre, alagada e malcheirosa, como se estivesse há muito com as feridas abertas, em putrefacção. É uma região “perigosa”, “tensa”, que leva o apelido de “Marabala”, por ser “terra de pistoleiros”, ainda.
São 09.00 e Giselda, do Movimento dos Sem-Terra (MST), ainda não devolveu a chamada do dia anterior. Dois dias depois viria a autorização para conhecer o trabalho e a “luta” social do MST “pela terra”, no Acampamento João Canuto, a três horas de viagem pela precária estrada PA-150, mais a sul.
Há um clima de desconfiança na sede do MST. Palavras breves e a pergunta constante: “Está a gravar?” Giselda tem razões para desconfiar. Alguns membros do MST vivem sob ameaça de morte. Ela já viu “muitos companheiros” assassinados. “Os responsáveis continuam impunes”, diz, como quem diz que continuam à solta para continuar a matar. Depois, o MST tem “fama de corrupto”, “violento” e “perigoso”, sobretudo porque “ocupa” grandes fazendas, apropriadas “ilicitamente”.
Para Mercedes Queiroz, de 27 anos, responsável pela coordenação estadual do MST, é uma “imagem construída” pela “imprensa burguesa”. “Reivindicamos um direito garantido pela Constituição: a terra. E somos oprimidos por fazer cumprir a lei.”
A semana passada, por exemplo, integrantes do MST de Marabá foram “acusados” de terem destruído plantações na fazenda de Daniel Dantas, um famoso banqueiro brasileiro. O cenário de “opressão” a membros do MST, ressalva Mercedes, repete-se “constantemente”, por todo o Brasil. Mas nesta região o conflito pela terra é ainda “mais intenso”. Para Mercedes, as autoridades “fecham os olhos”. Mais do que “a luta pela terra”, completa, o MST reivindica uma “reforma agrária popular”.
O que isso significa? “É a transformação da sociedade a partir de uma reforma agrária.” É essa a “luta” do “Índio”, como é conhecido no Acampamento João Canuto. Magro, moreno, com rugas ao redor dos olhos, ele não muda o tom de voz, cerimonioso e seco para contar como “quase” morreu com seis balas no corpo.
Em Abril, ele e outros “companheiros” foram apanhados numa “armadilha” na Fazenda Espírito Santo, do Daniel Dantas. “Os jagunços [capangas] da fazenda”, conta, “fizeram alguns companheiros nossos reféns e disseram que queriam conversar connosco”, conta. Ele e “outros” foram “em marcha” até à Fazenda. Quando chegaram, “um canal de televisão” estava lá. “Ouvimos o gerente da Fazenda dar ordem para atirar e começaram a chover balas. Não tivemos forma de nos defender. As nossas únicas armas são a foice para trabalhar a terra”, desabafa. A maioria dos seus companheiros morreu no “massacre”.
O Índio foi “salvo” por um jornalista desse canal. “Ele disse ao pistoleiro que queria falar comigo. Deve ter tido remorsos e pediu para me socorrerem.” Ele diz que quer “conquistar” a terra “pela paz”. “Preferimos morrer a desistir de lutar por esse direito.”
A longa luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
O MST é um movimento social brasileiro, com inspiração marxista, que comemorou este ano 25 anos, formado em Cascavel, no Paraná, quando alguns trabalhadores rurais se organizaram para lutar por uma Reforma Agrária. O movimento existe em 24 estados e, até agora, 350 mil famílias conquistaram a terra “por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais”. Como funciona a ocupação de terras? “O colectivo da Frente de Massas”, conta Mercedes, “vai percebendo quais as terras do Governo apropriadas ilicitamente ou que não estão a cumprir a sua função social”. “Depois”, continua, o MST “sensibiliza famílias sem-terra” e elas passam a organizar-se num acampamento. “Resistem na terra, enquanto correm os trâmites judiciais de ocupação da terra”. Já o “assentamento” avança quando se “legaliza a terra a favor dessas famílias organizadas”. Depois, o “grande desafio” é avançar “produtivamente”, para “cumprir” a Reforma Agrária Popular, com base em princípios de “exploração ecológica”, esclarece.
Nota: na publicação do Diário de Notícias foi alterado, por decisão do editor, o nome de Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra por Movimento Sem Terra. Só quando foi publicado percebi a alteração. As duas designações são muito distintas e referem-se a movimentos sociais diferentes. No Brasil, Movimento Sem Terra refere-se aos movimentos sociais em geral de ocupação de terras, enquanto que o MST é uma organização estruturada com objectivos e linha política definida. Nesse sentido, a alteração induz em erro o leitor como se se tratasse da mesma coisa.
Tendas de Campismo/terra indígena
Tendas de campismo são ‘terra indígena’ no Pará
Publicado no Diário de Notícias a 8 de Nov´
“Moicaracó! Moicaracó!”, chama pelo rádio o índio Ma ti Krê, cabelo negro, tatuagens nos braços, sapatilhas de marca, calças de ganga e bolsa de máquina fotográfica a tiracolo. A sala onde está sentado é insalubre, com cheiro azedo. As baratas rasam-lhe os pés, há roupa a secar nos fios eléctricos e várias tendas de campismo puídas estão armadas ao redor. Ma ti Krê insiste. Quer falar com o líder indígena da aldeia de Moicaracó, da etnia Kayapó. Ele é Xicrin, de uma aldeia perto de Marabá: são todos “parentes”. Ele tenta sintonizar o rádio: é “o único meio” que as aldeias indígenas no Brasil têm para comunicar entre si e com a Fundação Nacional do Índio (Funai) que lhes dá apoio. São 11 horas da manhã e Ma ti Krê, como muitos outros ‘parentes’ de outras etnias, espera na Casa do Índio de Ourilândia do Norte, no Sudeste do Pará, Brasil, uma resposta sobre se a aldeia Moicaracó será ou não homologada terra indígena, conforme anunciou a Funai para essa semana.
O Presidente Lula da Silva, que anda pela região num périplo de inaugurações com a chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, a propósito do Programa de Aceleração de Crescimento, confirmou presença com uma comitiva de peso. Os ‘parentes’ estão entusiasmados com a cerimónia e concentraram-se em Ourilândia do Norte, que serve de ‘base’ para seguir para a aldeia indígena, a mais de 500 quilómetros dali. Até lá só há dois acessos: de avião da Funai ou de carro, com tracção a quatro rodas.
Depois de mais de dez minutos a tentar chamar Moicaracó ouve-se do outro lado da frequência um zumbido e uma voz rouca fala em Kayapó. “É Ai ki Boro”, reconhece Ma ti Krê, referindo-se ao líder indígena da aldeia e passa o transmissor. “Ai ki boro!. Daqui é a sua parente Célia Maracajá da Fundação Curro Velho de Belém. Haverá cerimónia?”, questiona. Ai ki boro garante que sim, que foi adiada “uns dias” e pede para a Célia contactar a Funai em Ourilândia do Norte para nos levar até à aldeia. Célia não está confiante. Despede-se de Ai ki Boro e, enquanto pousa o transmissor, arregala os olhos e torce os lábios como quem diz que alguma coisa está errada. Atrás dela, vários adolescentes estão com os olhos colados no ecrã de televisão. Um deles aproxima-se e pergunta-lhe quando ela dará outra aula de vídeo. Célia explica “o fascínio dos índios” pela imagem. “Eles têm um olhar incrível”, entusiasma-se. “Quando filmamos as festas de alguma aldeia indígena, eles pedem para ver a versão integral, sem edições, e são capazes de ficar horas a ver o filme, com um olhar intenso, genuíno.”
À porta da Casa do Índio, que funciona como um centro de acolhimento, estão acampadas, precariamente, dez famílias de várias etnias. Começam a chegar vários caciques – nome do líder indígena – de outras aldeias. O movimento aumenta. É hora de almoçar: chegam pacotes embalados que a Funai mandou entregar para os “parentes” que moram na Casa. Uma das mulheres indígenas leva dois: um para ela, outro para a filha. Pede dinheiro à Célia para comprar um refrigerante. Coloca o pacote embalado de comida no cimento que tapa o poço e vê-se uma mistura de farofa, massa, arroz, feijão e carne. Num primeiro olhar parecem restos de comida. Ela separa o arroz e a carne e atira o resto ao chão. Só fala Kayapó e pragueja algo que Ma ti Krê traduz. “Todos os dias comemos os mesmos restos, hoje só me apetece o arroz e carne. Amanhã é dia de feijão.”
Crianças desidratadas
Publicado no Diário de Notícias a 8 de Nov’
Bei Mati não vai pagar a conta na única churrascaria da vila de Tucumã, no Sudeste do Pará no Brasil. Tem carta branca naquele restaurante por causa de um acordo de uma “grande empresa” da região que negociou com a aldeia indígena onde ele mora, um “plano de saúde e alimentação”. Em troca a empresa “pode explorar o minério da terra”.
Bei Mati, 24 anos, índio da etnia Xicrin, mora numa aldeia indígena perto de Marabá, mais a norte de Tucumã. Está “satisfeito” com as “regalias” da “empresa”, porque, “em geral a assistência de saúde ao índio da Fundação Nacional de Saúde [Funasa] é muito má e demorada”, desabafa. “Eu bem vejo como os parentes de outras aldeias são mal atendidos. Nós temos sorte.”
As manifestações em sedes da Funasa por grupos de etnias indígenas são frequentes. Eles reivindicam “melhor atendimento de saúde”. Bei Mati denuncia que a “Funasa tem piorado muito a assistência nos últimos meses”. Depois muda o discurso e diz que algo “muito estranho” anda a acontecer na sua aldeia. “As crianças estão cada vez mais doentes e ninguém sabe explicar o que se passa”. Ele acha que é da água.
“Antes podia beber-se sem problemas, mas nos últimos meses tem havido muitas diarreias e as crianças estão a ficar desidratadas”, continua desalentado. Depois confidencia que a “tal empresa” tem “enviado engenheiros para analisar a água do rio da terra” dele.
Ourilândia do Norte
Em Ourilândia do Norte já houve garimpo. Hoje, há pó cor-de-cobre que enche os pulmões, calor tórrido, sem aragem, gente de alma fria a tentar sobreviver em terra árida
Não se pode estar à porta do Hotel Carajás a partir das 06.00. A garganta começa a sufocar, o ar falta até à perda dos sentidos. Não corre aragem, o sol favorece o mercúrio: o termómetro chega em poucas horas dos 30 aos 42 graus. O corpo goteja suor. Clima seco, tropical quente. Só as pickups e os camiões (em média, num minuto, passam dez) aceleram na estrada que ali passa à porta do “melhor hotel” da cidade.
Na realidade é uma pousada com meia dúzia de quartos na Ourilândia do Norte, a sudeste do Pará, no Brasil. Acelerados, os camiões deixam uma nuvem de pó seco, cor-de-cobre, que se entranha no corpo e sufoca. O lugar parece o faroeste. Não chove há semanas. A carne que seca ao sol, ao lado do hotel, deve estar impregnada desse pó: carne de tatu e de boi. As pessoas que ali passam a pé também a levam, na pele. São gente sofrida. As rugas chegam cedo, os pés calejam jovens de galgar aquela estrada árida, roubada à floresta amazónica, e que hoje liga o Norte ao Sul do Pará. Ou vice-versa: sentido subdesenvolvimento à “civilização”, diz ao DN Lisandra Serra, dona do “hotel”.
“A prefeitura [câmara municipal] recebe dinheiro das grandes empresas da região para melhorar as infra-estruturas, mas não faz obras. Não se sabe para onde vai esse dinheiro”, ironiza. A “maldição” da ironia baptizou a cidade: deve o nome ao ouro que abundava. Nasceu do suor de um grupo de garimpeiros, que foi excluído do projecto Tucumã, de uma empresa construtora, e que criaria, nos anos 70, a esperança de um trabalho. A notícia atraiu milhares de migrantes à região, sobretudo do Nordeste brasileiro e do Maranhão.
Muitos que ali ficaram contam os trocos diários, a ver se terão algum para comer, nem que seja a carne que seca ao sol, com pó. “A maioria, ficou por orgulho”, diz Lisandra. “Tiveram vergonha de voltar às origens, pior que quando partiram.” Muitos “fizeram pequenos negócios”. Outros “conseguiram emprego nas grandes empresas de mineração” que ali estão instaladas e “têm pistas de avião privadas”.
A região é um paradoxo: dois motéis luxuosos e um bar chique em frente à estrada de pó. Ao redor, miséria. E “nada” para fazer. A Internet é uma hipérbole de lentidão: com sorte, lêem-se e-mails em versão html; a comida menos duvidosa resume-se a frango com arroz e a água para tomar banho pode acabar a qualquer momento.
Serão três dias de espera nesta terra do “ouro miserável”. A Fundação Nacional do Índio (Funai) não confirma se haverá homologação da terra indígena em Moicaracó, da etnia Kayapó em São Félix do Xingu, na data marcada. Adia- -se mais um dia. “É muito difícil chegar lá: o rio está seco, não dá para ir de barco”, diz Célia Maracajá, que tem autorização para ir gravar em vídeo a cerimónia. “E a estrada é uma miséria de vegetação e terra batida. O melhor é de avião, mas só a Funai tem acesso”, completa.
O presidente Lula da Silva ainda não confirmou se vai. E uma fonte do Partido dos Trabalhadores vai dizendo que a agenda da Presidência está “atarefada” com inaugurações do Plano de Aceleração do Crescimento até ao fim do mês. Só resta esperar, sem “nada para fazer”, no hotel Carajás. Da varanda, já se vê um manto cinzento – traz vendaval e a primeira chuva tropical do mês. Arrasta árvores e levanta o pó a ameaçar um tornado. Em segundos vem o dilúvio que corre acelerado à porta do “melhor hotel da cidade”, onde nunca se pode estar.
Garimpo e ilusão
Agostinho não quer dizer o último nome, nem ser fotografado. Diz que toda a gente o conhece por “Agostinho do táxi”. E garante que foi “o primeiro” a formalizar a profissão na Ourilândia do Norte”, no Sudeste do Pará, no Brasil, após ter acabado o garimpo de ouro na região. Hoje só grandes empresas extraem níquel ali, acredita-se.
Agostinho só tem um carro para fazer o serviço. E em terra de miséria e de sete autocarros diários, quem o tem “é rei”, diz. Cobra 50 reais (18 euros) para fazer dois km.
O carro cheira a mijo, os bancos colam à roupa, as borrachas com camadas de pó. É noite, o resto não vemos. Ele diz que Ourilândia tem “muitas histórias”. A dele é “simples”: nasceu em São Luís do Maranhão, foi garimpeiro, “usava mercúrio para separar o ouro” e nunca quis voltar à terra. “Habituei-me aqui.” Não esconde que é uma “terra miserável”. Para ele, “melhor que no Maranhão, melhor que nada”. “Nada” foi o que herdou dos tempos de garimpeiro. “É uma ilusão. Mata-se por pouco. Pode encontrar-se muito ouro num dia, mas é uma pedra envenenada. Gasta-se rápido”, lembra. Houve “alguns” que até “enriqueceram”: “O dono de um grande motel aqui na Ourilândia achou 600 gramas de ouro. Gastou tudo e só não perdeu o motel porque estava em nome da mãe.” No fim da viagem, entrega um cartão de visitas: “Agostinho do táxi, pioneiro.”
Subornos, desmatar
Publicado no DN a 18 Out’ 2009
Quatrocentos quilómetros de Marabá a Ourilândia do Norte: as grandes empresas de mineração e celulose devastam o coração da selva amazónica. Os fogos multiplicam-se um pouco por toda a parte
A Célia está revoltada. Olha incrédula para o vale nu. Aproxima-se da janela da carrinha como se ampliasse o olhar para se certificar de que está a ver bem. Suspira “Meu Deus!” baixinho. “Há dois anos tudo isto era mata”, murmura, enquanto olha as bermas da precária estrada PA-150 que liga o Nordeste do estado do Pará até ao sul, no Brasil.
Partimos de Marabá até Ourilândia do Norte: 400 quilómetros. Até lá é preciso dormir em Xinguara e apanhar outro autocarro no dia seguinte. Célia continua a falar baixinho: “Não se sabe quem vai” na carrinha. “Esta região está toda desmatada. Só se vê bois e grandes fazendas. E as grandes empresas de mineração e celulose estão a devastar a área com o consentimento dos governos locais”, diz Célia ao DN. “Quem os denuncia corre risco de vida. É preciso falar baixinho.” Célia Maracajá trabalha na Fundação Curro Velho, em Belém, uma ONG que promove a cultura regional. Ela já galgou muito a Amazónia a fazer documentários para o projecto “TV, Navegar Amazónia”, do cineasta brasileiro Jorge Bodanzky. Já falou “alto” para denunciar, fez reportagens e campanhas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o mesmo do Presidente Lula da Silva. E já teve o nome na lista negra de alguns políticos na região. Conhece as lutas e o suor que sai do corpo de “muita gente”, para “salvar” a Amazónia. O desmatamento continua a ser uma “doença crónica”, mas a “pistolagem” também (“são homens armados que matam para calar”). “Esta é uma “Amazónia que não vem nos guias”, ironiza. Célia está a caminho de São Félix do Xingu, mais a sudoeste, por causa da homologação da terra indígena Moicaracó, de etnia kayopó. Ainda não sabe como vai chegar até lá. E o Presidente Lula da Silva ainda não confirmou. A carrinha que a leva até meio do caminho, em Xinguara, foi um “improviso”. O autocarro que iria apanhar avariou. Não havia outro para substituir. “Aqui é terra de ninguém, a lei é feita pelos homens e pela bala”, desabafa. Foi por essa “lei” que o cartão do meu chip de telemóvel brasileiro foi clonado. Comprei uma recarga de crédito que entrou noutro número. “Isso acontece”, diz o dono do bar que ma vendeu na rodoviária de Marabá.
À saída da cidade, o motorista da carrinha passa no “posto de fiscalização”. Leva quatro passageiros a mais, em pé. Ele pára, remexe no bolso da camisa e dá 60 reais (cerca de 20 euros) ao fiscal do posto que lhe deseja “boa viagem”. “Você percebeu?”, dizem, baixinho, os olhos de Célia.
Os camiões que passam vão cheios de gado. Não se pode falar sobre isso, nem sequer “baixinho”. Alguns camionistas vão acompanhados de miúdas com idade para serem filhas. Cheira a queimado. No meio da mata há pequenos focos de fogo. O fedor a carbonizado mistura-se com o de estrume no ar. O motorista aumenta o volume do rádio. Ouve-se o som da moda do Pará: o techobrega é uma mistura de música electrónica e caribenha com sons de órgão e batidas de baile.
Entram duas mulheres loiras com um cão chamado Harley. Os homens que vão na parte traseira da carrinha animam-se em sorrisos lunáticos e “bocas” atrevidas. O clima fica pesado. Anoitece. Há mais fogo na berma da estrada. O fumo tira a visibilidade e intoxica. A ponte que atravessamos está esburacada. Há tatus na berma da estrada, sapos a atravessarem-na e uma enorme cobra morta. Queriam fugir do fogo. Seis horas e meia de estrada para galgar 200 quilómetros e chegamos a Xinguara. A Célia procura uma pousada “decente”. A primeira tem escadas de tijolo, inacabada, quartos com cheiro a esgoto, bichos em festa no chão e o dono garante que não encontraremos “melhor”. A segunda tentativa: o quarto parece uma cela solitária, insalubre, com marcas de vários bichos mortos nas paredes. E a retrete do WC tem manchas coloridas que preferimos não saber o que é. Última hipótese para dormir: temos o “básico” e chuveiro com água fria. “Está bom assim”, achamos. É tarde, e na terra de ninguém não encontraremos “melhor”.
Círio de Nazaré
Oneide Bastos já sabe, há muito tempo, que mantas colocar nas janelas da casa todos os segundos domingos de Outubro. “São as de renda, alvas, de família, que ponho há anos e que a Nossa Senhora de Nazaré já conhece.” Semanas antes mandou-as tirar da hibernação e arejar para as estender hoje. A procissão do Círio de Nazaré, a maior festa católica do Brasil, em Belém do Pará, não passa à porta, “mas começa perto”, a alguns passos dali, na Catedral da Sé, às sete badaladas matutinas. E a casa da vovó Oneide, como lhe chamam os netos, agora restaurada pelo Instituto de Património Histórico e Artístico Nacional, pois as paredes e as divisões sussurram também a história da cidade, é “há muitos anos referência em Belém”.
Olhos em regozijo, mãos cunhadas de 93 primaveras, Oneide diz ao DN que o Círio é, para ela, “o dia mais importante” do ano. E “o almoço de família”, depois da procissão, “o momento mais importante da festa”. Na casa dela há 26 cadeiras à mesa para comer o tradicional pato no tucupi, molho apimentado típico paraense feito a partir da mandioca amarela. Ao longo do dia, as cadeiras já serão poucas para receber os primos afastados e os amigos da família.
“Em Belém”, diz César Neves, um dos responsáveis pela organização das festividades de nossa Senhora de Nazaré, a padroeira da Amazónia, “o Círio é mais importante que o Natal”. A festa tem mais de dois séculos e é de origem portuguesa (ver caixa). Trocam-se presentes. Compra-se a melhor comida para o “grande almoço”. O fervor é “especial”, sobretudo, no estado do Pará. Há réplicas do Círio de Nazaré em quase todas as comunidades amazónicas da região. Em Curuçá, a 140 km de Belém, Joelma Santos engordou os patos para os comer hoje, e a família Penante enfrentou quatro horas de barco desde a ilha do Marajó para “ver a Santa”.
Na televisão anuncia-se há semanas que o Círio está a chegar: é “tempo de renovação da fé”. Nas ruas há cartazes gastos de semanas com a imagem da Santa. Nas bombas de gasolina, há pequenos santuários. E as farmácias vendem o kit completo: T-shirts religiosas, pulseiras coloridas e um ‘abanador’ para enfrentar o tórrido calor amazónico, que é também um calvário da romaria. Hoje, os quatro quilómetros de procissão entre a Sé e a Praça da Basílica é feita debaixo de 33 graus.
“Todos os anos é como se fosse a primeira vez”, conta Gilmar Cosme, o decorador da berlinda, o carro que leva a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, o mais importante do Círio, para onde todos os olhos convergem, pedindo em segredo que ela “acuda” às promessas. “A Santa tem de estar linda, para que o povo se identifique com ela. Se estiver simples, dirão que estava pobrezinha”. Ele promete que, este ano, ela estará “piedosa,” como “o povo gosta”, com “cravos, lírios e angélicas”. As festividades já começaram há duas semanas, os preparativos duram um ano. Só que hoje “é um grande momento para o mundo católico”, reforça Neves, que é descendente de portugueses. Ele já esteve em Meca, na Arábia Saudita, e em Fátima, no 13 de Maio, por isso garante: “O Círio de Nazaré é o maior fenómeno religioso do mundo”.
E hoje: lágrimas, pés descalços a pagar promessas, mãos levantadas para o céu, ruas apinhadas de fiéis que tentam chegar à corda que alinha a procissão. Na baía de Guajará, no delta do Amazonas a cercar a cidade de Belém, há dezenas de embarcações em romaria. Olhada do alto, a cidade parece ter milhares de formigas coloridas em terra e em água, que se acotovelam, choram, e pedem à Santa para que, no próximo ano, a possam ver de novo como se fosse a primeira vez.
De PT para BR, com devoção
De Portugal para o Brasil, com devoção
Quando no séc. XVII o caboclo Plácido, descendente de portugueses, andava pelas imediações do canal Murucutu, onde hoje está a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, e encontrou uma pequena estátua da Santa, não poderia imaginar que seria o fundador da principal romaria da cidade. Plácido resolveu erguer uma ermida. A Santa já era conhecida nas redondezas, depois de os jesuítas a introduziram, um século antes, na tradição católica do Pará. O “milagre” começou a atrair centenas de fiéis. Hoje, o Círio de Nazaré, é a festa católica mais importante do Brasil e Património Histórico Imaterial. A tradição conta que a imagem original da Virgem, entalhada em madeira, teve origem em Nazaré, na Galileia. No séc. XII a devoção chegaria a Portugal, como símbolo de fé do cavaleiro D. Fuas Roupinho que mandou erguer a Capela da Memória, para agradecer à Virgem tê-lo salvo de um acidente. Dois séculos depois, o rei D. Fernando fundaria o Santuário Nossa Senhora da Nazaré e, desde então, o 8 de Setembro é, na vila de Nazaré, a data da devoção à Santa, celebrada com as festividades do círio da Prata Grande.
Fim da pesca artesanal?
A ponte que liga a ilha de Algodoal à colónia de pescadores em Fortalezinha já não existe. Caiu “há anos”, explica o pintor Bergo, morador da ilha. “Nunca mais foi reconstruída.” A única forma de chegar lá é “alugar barco”, ou “apanhar boleia com um pescador”.
A região ainda preserva a pesca artesanal. As águas estão decoradas com estacas finas de madeira velha, armadilhas para o peixe e caranguejos, redes de pesca extensas e barcos pequenos com homens solitários que aguardam o melhor momento para as recolher. A poucos metros deste cenário, o canal que vai de Algodoal até Fortalezinha parece, ainda, virgem. Há botos a mergulhar – mamíferos parentes dos golfinhos – garças altivas a apanhar sol nas margens, floresta densa, e peixe que saltita.
Nisael dos Santos faz, muitas vezes, essa travessia. É presidente da Associação de Empreendedores de Turismo da Ilha de Algodoal e, todos os dias, recolhe as crianças das comunidades para levá-las à escola. Conhece bem as feridas da região. “Há cada vez menos pescadores. Estamos a tentar criar projectos de renda alternativa. Se não, tudo se pode perder”, diz.
Ilha de Algodoal
O algodão que lhe deu o nome já se foi, há cada vez menos tartarugas a desovar nas suas praias e o lixo ameaça a ilha a norte de Belém.
Os barcos que vêm da ilha de Algodoal estão carregados de famílias. São precários, com tinta a disfarçar as fendas que a água sal- gada provocou. Voltam do fim-de- -semana, ultrapassam a lotação e deixaram lixo para trás.
As embarcações que saem do porto de Marudá para a ilha de Algodoal, no arquipélago de Maiandeua – na língua indígena tupi significa “Mãe da Terra” – a 150 km de Belém, no Brasil, estão vazias. Quase todos voltam. Quase ninguém arrisca ir. O tempo ameaça fechar. O barco tem dificuldade em atravessar o canal. Só carrega dois passageiros. Chove. 50 minutos depois de ondulação violenta já se vêem, no horizonte, dunas que parecem montanhas. Antes, dizem os mais velhos, viam-se também fibras brancas no ar do algodão-seda que deu o nome à ilha, em plena Amazónia Atlântica. Hoje, a planta “já não existe”, diz, com voz angustiada, Alessandro Ferreira, conhecido como Bergo, pintor e dono de pousada em Algodoal.
O porto da ilha, o Mamede, é a praia. À espera de ganhar dinheiro com a gente que chega de barco estão carroças puxadas a burros, o principal meio de transporte por aqui. Até à vila de Algodoal a caminhada faz-se sob sol quente, areia mole e que torna o périplo num cansaço contínuo de 15 minutos. Estender a coragem significa ir até à praia da Princesa, a mais famosa e palco de lendas, banhada pelo Atlântico. Será mais uma meia hora de caminhada: passar pelo mangue de areias movediças com água até à cintura e ver as armadilhas que os pescadores preparam para apanhar peixe quando a maré baixar. Tudo o resto é uma imensa solidão.
José Cristo, ex-pescador, e hoje dono de um bar na Ilha, com a filha Helena, diz que a Princesa, “a dona da praia”, gosta assim. Diz que já a viu, que “é loira e glamorosa”, um “espírito que poucos têm o privilégio de ver”, e que a seguiu, “há muitos anos, até à Lagoa” com o nome dela. “Ela não gostou e, nessa altura, a minha vida ficou problemática”, conta. Hoje, “a vida já se endireitou”. Cristo foi um dos primeiros moradores da Ilha e é um dos maiores activistas na preservação. Aponta, ao longe, para uns paus de madeira, envoltos numa fita institucional de isolamento, como nos filmes policiais. “Vê aquilo ali? Tem ovos de tartarugas que outros pescadores queriam levar para comer. Eu não deixei. Temos de preservar a Ilha: é a nossa maior luta.”
É que “a ilha de Algodoal cresceu desordenadamente”, explica Bergo, activista na implementação de um Plano de Manejo Sustentável para a Área de Preservação Ambiental da Ilha. Proliferam pousadas sem licença, turismo em massa e há “o grave problema de como tratar o lixo”. Aliás, um clássico em muitas ilhas ao redor de Belém. Uma das soluções, acredita Bergo, será a “consolidação” do plano que alguns moradores estão a tentar articular com a Secretaria de Meio Ambiente. “Mas é uma luta grande, porque não há consenso para preservar Algodoal.”
Peixe abundava
Começou a pescar aos nove, hoje tem 47 anos. E saudades de como era “antes”.
A Dona Rosa não mora aqui. Agora que recebe turistas na “casa da praia” a vida “melhorou”, conta ao DN enquanto grelha peixe. Ergueu-a com estacas acima da areia para aguentar a maré-alta, na Ilha da Romana. Ela tem 47 anos. Mora na vila de Abade, a uma hora de barco. Começou a pescar com o pai aos nove. Tem “saudades do tempo em que brincava com os irmãos” no barco do pai. E de quando a mãe lhe preparava o peixe. “Tive uma infância muito feliz. Fazia muitas malvadezas com as outras crianças”, diz Rosileine Saraiva, Rosa para os amigos. Pele queimada, corpo rijo, atlético, olhar de menina, mãos engrossadas pelas redes de peixe que puxou.
Hoje está lua cheia. “Está bom para pescar”. Não como dantes. “Antes, havia muito mais peixe. Há uma grande diferença. Lembro-me de ele saltitar na água.”
Rosa não é daqui, da ilha. É filha de Bragança, a norte de Belém, fundada no século XVII pelos portugueses. Tem quatro filhos. Não é a única pescadora da região, mas é das “poucas resistentes”.
Ilha da Romana
A norte de Belém, onde o Amazonas entra no Atlântico, a aposta é no ecoturismo para preservar a natureza.
O cenário é apocalíptico. Um vazio interrompido por troncos de árvores, secas, enterradas na areia que parece farinha peneirada. Abutres, muitos, esvoaçam em bando. Não resta peixe na orla. Apenas espinhas emaranhadas em palha e restos que o mar de água cor de terra deixou no vasto areal plano. Há ondas calmas, que são já Amazónia Atlântica, aqui na Ilha da Romana, na Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá. Fica a norte de Belém, no Brasil. Lá, onde principia o Atlântico e o rio Amazonas deixa de o ser para ser mar. Ou onde começa, em fluxo inverso, antes de subir ao ventre, no Peru.
“Esta praia selvagem é ainda um paraíso”, diz Charles Mendes, guia do Instituto Tapiaim, projecto de ecoturismo de base comunitária que, em parceria com a Estação Gabiraba, empresa com mesmo propósito, e a ONG Peabiru ajudam a preservar o local levando alguns turistas à comunidade. Há poucas casas. São cabanas de pescadores. Ao longe só se vê um deserto de areia. No horizonte, uma imensidão de água. O sol intenso absorve o azul do céu, desafiando o fotómetro. 35 graus.
A sede não aguenta cinco minutos. A pele queima. Os missionários católicos, jesuítas que por aqui deixaram pegadas no século XVII há muito levadas pelo vento que de nada serve para amenizar o calor infernal, certamente fizeram penitência com as pesadas vestes sob tal temperatura. A localidade de Abade onde se instalaram, a uma hora de barco da Ilha da Romana, ainda ostenta a igreja que lhes serviu de casa para evangelizar “o povo da Amazónia”.
A norte-americana que acompanha Charles com um grupo de estudantes dos EUA não sabia quem eles eram, até ali. Aliás, ela pouco ouve o que o guia diz. Está entretida a apanhar as bolachas-do-mar, parentes dos ouriços, que se enterram na areia. Quando mortas desfazem-se na mão. As que ela apanhou estão vivas. Charles fica um pouco irritado quando descobre o copo de plástico cheio delas. Ela pensa que ele está a brincar. “Tens de as colocar de novo na areia. Isto é uma Reserva Ecológica, não podes levar nada daqui a não ser a memória”, diz-lhe. A miúda de cabelos pretos e pele vermelha, recém-queimada pelo sol, ruboriza ainda mais e concorda. Devolve-as, até porque, se não as perdesse quando se desfizessem, perdê-las-ia no mangue da ilha (ecossistema húmido tropical, característico do encontro do rio com o mar).
Aí, a luta entre enterrar as pernas num lamaçal pegajoso e retirar os pés sem perder os sapatos é um equilibrismo só para especialistas. A luta para sair do lugar cansa o corpo em segundos: o mesmo tempo que demora a equação da adrenalina igual a pânico, quando se atravessa os lençóis de areia da praia da Romana. As extensas poças que o mar deixa sugam os pés em areias movediças. “Quando isso acontece, o que temos a fazer é deitar-nos de costas, porque elas não se afundam e, com calma, desenterrar os pés”, ensina Charles.
Quanto à memória, a da Romana, não há nada a fazer, já se entranhou cá dentro, como areia pegajosa, apocalíptica.
Banho-de-cheiro, Amazónia
Publicado do Diário de Notícias e 13 Set’ 2009
Leva, pelo menos, 30 ervas. Afasta mau-olhado. Atrai o amor, felicidade, purifica, cura.
“É para isso que serve o banho-de-cheiro”, assegura o erveiro (nome que se dá a quem trabalha com a colecta e preparação de plantas na Amazónia) Paulo Teles, morador em Boa Vista do Acará, referindo-se ao tradicional banho de ervas do Pará. Ele que é um dos últimos erveiros genuínos da região.
Paulo diz ao DN que já perdeu há muito a conta aos anos que trabalha com estas ervas. Recolhe-as meticulosamente na mata, prepara-as e vende-as depois no Mercado Ver-o-Peso, em Belém. Garante que já curou “algumas pessoas” com elas.
Patcholi, pau-de-angola, sementes de cumaru, raízes de priprioca, sândalo, cedro.
“Demasiadas ervas para me lembrar”, suspira.
Antes do São João, o Pará enche-se do hábito, só que “nos últimos anos tornou-se “moda”, diz. Ele já não se lembra da última vez que tomou um, “nem há segredos na mistura das ervas”.
É só “recolhê-las, juntá-las à água, misturar e triturá-las com as mãos para abrir os aromas”, descreve o erveiro.
Posteriormente a água come- ça a ganhar um cheiro intenso, cor acastanhada, e, quando escor- re pelo corpo, o cheiro vai-se en- tranhando.
Fica assim durante dias. “E leva com ele todos os problemas”, assegura Paulo Teles, dono e senhor dos segredos das ervas que atraem o amor e podem até, segundo reza a tradição, curar alguns males mais persistentes. Do corpo e da alma.