Subornos, desmatar

Postado por Vanessa Rodrigues em 30 de Outubro de 2009

roadmarabaPublicado no DN a 18 Out’ 2009

Quatrocentos quilómetros de Marabá a Ourilândia do Norte: as grandes empresas de mineração e celulose devastam o coração da selva amazónica. Os fogos multiplicam-se um pouco por toda a parte

A Célia está revoltada. Olha incrédula para o vale nu. Aproxima-se da janela da carrinha como se ampliasse o olhar para se certificar de que está a ver bem. Suspira “Meu Deus!” baixinho. “Há dois anos tudo isto era mata”, murmura, enquanto olha as bermas da precária estrada PA-150 que liga o Nordeste do estado do Pará até ao sul, no Brasil.

Partimos de Marabá até Ourilândia do Norte: 400 quilómetros. Até lá é preciso dormir em Xinguara e apanhar outro autocarro no dia seguinte. Célia continua a falar baixinho: “Não se sabe quem vai” na carrinha. “Esta região está toda desmatada. Só se vê bois e grandes fazendas. E as grandes empresas de mineração e celulose estão a devastar a área com o consentimento dos governos locais”, diz Célia ao DN. “Quem os denuncia corre risco de vida. É preciso falar baixinho.” Célia Maracajá trabalha na Fundação Curro Velho, em Belém, uma ONG que promove a cultura regional. Ela já galgou muito a Amazónia a fazer documentários para o projecto “TV, Navegar Amazónia”, do cineasta brasileiro Jorge Bodanzky. Já falou “alto” para denunciar, fez reportagens e campanhas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o mesmo do Presidente Lula da Silva. E já teve o nome na lista negra de alguns políticos na região. Conhece as lutas e o suor que sai do corpo de “muita gente”, para “salvar” a Amazónia. O desmatamento continua a ser uma “doença crónica”, mas a “pistolagem” também (”são homens armados que matam para calar”). “Esta é uma “Amazónia que não vem nos guias”, ironiza. Célia está a caminho de São Félix do Xingu, mais a sudoeste, por causa da homologação da terra indígena Moicaracó, de etnia kayopó. Ainda não sabe como vai chegar até lá. E o Presidente Lula da Silva ainda não confirmou. A carrinha que a leva até meio do caminho, em Xinguara, foi um “improviso”. O autocarro que iria apanhar avariou. Não havia outro para substituir. “Aqui é terra de ninguém, a lei é feita pelos homens e pela bala”, desabafa. Foi por essa “lei” que o cartão do meu chip de telemóvel brasileiro foi clonado. Comprei uma recarga de crédito que entrou noutro número. “Isso acontece”, diz o dono do bar que ma vendeu na rodoviária de Marabá.

À saída da cidade, o motorista da carrinha passa no “posto de fiscalização”. Leva quatro passageiros a mais, em pé. Ele pára, remexe no bolso da camisa e dá 60 reais (cerca de 20 euros) ao fiscal do posto que lhe deseja “boa viagem”. “Você percebeu?”, dizem, baixinho, os olhos de Célia.

Os camiões que passam vão cheios de gado. Não se pode falar sobre isso, nem sequer “baixinho”. Alguns camionistas vão acompanhados de miúdas com idade para serem filhas. Cheira a queimado. No meio da mata há pequenos focos de fogo. O fedor a carbonizado mistura-se com o de estrume no ar. O motorista aumenta o volume do rádio. Ouve-se o som da moda do Pará: o techobrega é uma mistura de música electrónica e caribenha com sons de órgão e batidas de baile.

Entram duas mulheres loiras com um cão chamado Harley. Os homens que vão na parte traseira da carrinha animam-se em sorrisos lunáticos e “bocas” atrevidas. O clima fica pesado. Anoitece. Há mais fogo na berma da estrada. O fumo tira a visibilidade e intoxica. A ponte que atravessamos está esburacada. Há tatus na berma da estrada, sapos a atravessarem-na e uma enorme cobra morta. Queriam fugir do fogo. Seis horas e meia de estrada para galgar 200 quilómetros e chegamos a Xinguara. A Célia procura uma pousada “decente”. A primeira tem escadas de tijolo, inacabada, quartos com cheiro a esgoto, bichos em festa no chão e o dono garante que não encontraremos “melhor”. A segunda tentativa: o quarto parece uma cela solitária, insalubre, com marcas de vários bichos mortos nas paredes. E a retrete do WC tem manchas coloridas que preferimos não saber o que é. Última hipótese para dormir: temos o “básico” e chuveiro com água fria. “Está bom assim”, achamos. É tarde, e na terra de ninguém não encontraremos “melhor”.

Related Posts with Thumbnails

Comente