Publicado no Diário de Notícias, 29 Nov’ 2009
Por Vanessa Rodrigues, Manaus
De Belém a Manaus são seis dias pelo Amazonas. Viagem a bordo de um navio que carrega viajantes à procura da Amazónia e gente a recomeçar uma nova vida
O navio mercante Santarém recolhe a âncora em Belém com três horas de atraso. Já há música alta na popa e cervejas na mão dos viajantes. Alguns lançam latas ao rio. O comandante Douglas (um norte-americano da Georgia que se apaixonou por uma brasileira, casou, separou-se e não saiu mais do Brasil para ficar perto da filha) avisa num português delicado, que agora é de vez. A viagem até Manaus já começou, pede desculpa pelo atraso e diz que é “normal”.
O que ele quer dizer, na verdade, é que os próximos seis dias terão 1300 km, com o rio Amazonas a servir de estrada, e pouco mais de duzentos passos, por dia, em corpo confinado: camarote-proa-estibordo-bombordo-popa. Haveria, porém, outras coisas nesta travessia Belém-Manaus – a mais famosa e movimentada da Amazónia – que ele não sabia que queria dizer. Coisas que estavam já nas entrelinhas e que, também, são quotidiano “normal”: um motor avariado que nos roubou um dia de viagem, centenas de bichos nocturnos que invadiriam o barco, sujidade, a pobreza da gente que o barco carrega, a comida tipo ração e aquele cheiro pestilento vindo das casas de banho.
Em frente, estão amarradas as dezenas de redes. É lá que dormem os que não têm dinheiro para pagar o bilhete de barco (é também lá que comem, defecam e se roçam em promiscuidade com a rede do lado) ou alguns estrangeiros iludidos com a ideia de viajar pelo Amazonas de rede (que balança violentamente sempre que o rio se enfurece).
Ao fim de seis dias o odor torna-se escatológico, insuportável. E o romantismo da viagem torna-se uma tortura. (A solução para enganá-lo ainda é o camarote). A mulher da limpeza atira com um líquido desinfectante lá para dentro. Não tem coragem de entrar para limpar. Não há controlo, nem denúncias da falta de higiene, apesar do cartaz na parede: “Disque denúncia”. Tudo é “normal”.
Lá fora, onde o cheiro é quente e doce, o Amazonas é uma valsa lenta. Nas margens, há crianças a brincar e gente que se lava. E há pequenas casas ribeirinhas de madeira que parecem de bonecas, assentes em estacas e que se chamam palafitas. Serão centenas, isoladas, até Manaus. Quem conhece os segredos deste rio conta que tem personalidade forte. É temperamental: desnuda margens e cobre de águas barrentas plantações inteiras. Depois, é um Rio-Mar vaidoso. Muda a paisagem por onde passa, quando quer, num vaivém de cheia e seca. No início deste ano fez um pacto com as chuvas e fustigou por mais de dois meses as margens, deixando várias famílias na miséria. Já se redimiu dando peixe abundante. Tem, ainda, a mania das grandezas. De uma margem à outra, pode chegar aos 50 quilómetros, por isso é o maior e o mais extenso do mundo. E quando menos se espera, ele sai dessa condição de prepotente e cai num confortante silêncio.
Como o daquela noite, apesar do ambiente pesado. Havia qualquer coisa estranha nos homens que olham de esguelha para o bolso dos outros à espera que se distraiam para surripiarem. Homens que viajam com pouco no bolso para começar uma nova vida. Como o Sandro, que está zonzo, bêbado. Diz que em Boa Vista, Roraima, é que há dinheiro. É lá que se vai fazer gente, para “quem sabe” realizar o sonho de ser polícia. Depois chora, bebe mais um gole de cerveja e conta que já foi travesti em Brasília, onde nasceu. Confessa que há “um homem” no barco “a recrutar para o garimpo de ouro”, ilegal. Ele não vai. Tem o corpo “seco”, fraco e “agora é de vez”, aquela viagem é o “recomeço”. “Acredita em mim?”
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