“Ai, que preguiça!”
Primeiro nasceu bicho-mudo, depois virou bicho-parasita-folgado; cresceu sendo preguiça-em-galho-de-carapanaúba, até se tornar cobra-malandra-espiando-gente, e depois jacaré-oportunista; veio a idade adulta e eis senão quando ele, Macunaíma, o herói (não-herói-anti-herói) criado pelo escritor brasileiro Mário de Andrade (1893-1945), em 1928, e parido bicho-feio no meio da selva amazónica, foi digno da glória escrota: tornou-se ermita-gente e safado-homem, sem carácter. Ahahah! Eis o herói do povo brasileiro; a pedra fundamental da cultura enraizada: a da malandragem; a da covardia; a da impunidade. É isso! Nada, nada: não é nada disso. Não o leve a sério: Macunaíma é um brinquedo! É nacionalismo crítico! Um pouco de Tropicalismo recém-nascido, antes de sêlo – e que Joaquim Pedro de Andrade adaptaria para cinema em 1969, sob o pano da estética tropicalista. Não esquecer: “Macunaíma” é uma obra surrealista; é uma crítica ao Romantismo, resgatando temas da mitologia indígena, do folclore amazónico. É uma rapsódia! Lido de perto, parece que lhe ouvimos os bichos do meio do mato…
No fundo, foi isso que a Iara Rennó fez. Em 2008, a cantora brasileira (filha do pesquisador musical, músico e letrista Carlos Rennó e da cantora Alzira Espíndola) inspirou-se em Andrade para lançar “Macunaíma, Ópera Tupi”.
E fica aqui:
Excerto do livro “Macunaíma”
i macunaíma
“no fundo do mato-virgem nasceu macunaíma, herói de nossa gente. era preto retinto e filho do medo da noite. houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. essa criança é que chamaram de macunaíma. já na meninice fez coisas de sarapantar. de primeiro: passou mais de seis anos não falando. sio incitavam a falar exclamava: if — ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada.”] ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, maanape já velhinho e jiguê na força de homem. o divertimento dele era decepar cabeça de saúva. vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, macunaíma dandava pra ganhar vintém. e também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. no mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. nos machos guspia na cara. porém respeitava os velhos, e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. as mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pagelança rei nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.
nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e macunaíma principiou falando como todos. e pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. a mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. macunaíma choramingou dia inteiro. de noite continuou chorando. no outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear. a mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. e pediu pra nora, companheira de jiguê que levasse o menino. a companheira de jiguê era bem moça e chamava sofará. foi se aproximando ressabiada porém desta vez macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. a moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. a água parará pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. o longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na estrada do furo. a moça botou macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!… e pediu pra sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato, a moça fez. mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. andaram por lá muito.quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. era que o herói tinha brincado muito com ela. nem bem ela deitou macunaíma na rede, jiguê já chegava de pes-car de puçá e a companheira não trabalhara nada. jiguê enquizlou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. sofará agüentou a sova sem falar um isto.jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. não vê que encontrara rasto fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha. macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. macunaíma principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra todos.no outro dia jiguê levantou cedo pra fazer arma-ilha e enxergando o menino tristinho falou:— bom-dia, coraçãozinho dos outros.porém macunaíma fechou-se em copas carrancudo.
— não quer falar comigo, é?
— estou de mal.
— por causa?
então macunaíma pediu fibra de curauá. jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino, a moça fez. macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda para ele e assoprasse bem nela fumaça de petum. quando tudo estava pronto macunaíma pediu pra mãe que deixasse o cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. a velha não podia por causa do trabalho mas a companheira de jiguê mui sonsa falou pra sogra que “estava às ordens”. e foi no mato com o piá nas costas. quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. falou pra sofará esperar um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. nem bem voltaram do passeio, tardinha, jiguê já chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. a companheira não trabalhara nada. jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. mas sofará agüentou a coca com paciência.no outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores, macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!… porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra ver.
a moça fez e voltou falando pra todos que de fato estava no laço uma anta muito grande já morta. toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. quando jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça, ajudou. e quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra macunaíma, só tripas. o herói jurou vingança.no outro dia pediu pra sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a bôca-da-noite. nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. brincaram. depois de brincarem três feitas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás, da piranheira. quando sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. puxou-o por uma perna. macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. sofará trepava atrás.
o ramo fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. quando a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. depois de brincarem macunaíma quis fazer uma festa em sofará. dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. quando o herói voltou da sapituca procurou a moça em redor, não estava. ia se erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. o herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem ver. então se escutou um risinho e macunaíma tomou com uma gusparada no peito, era a moça. macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, sofará gritava de excitação tatuando o corpo dele em baixo com o sangue espirrado. afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. ela pulou do galho e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo, uivando de prazer. e brincaram mais outra vez. já a estrela papacéia brilhava no céu quando a moça voltou parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. porém jiguê desconfiado seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. jiguê era muito bobo.
teve raiva. pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do herói. o berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.quando jiguê não pôde mais surrar, macunaíma correu até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. jiguê levou sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.”
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