Por Vanessa Rodrigues, em Manaus
(Uma crónica sobre um possível fim do mundo, dos mistérios do tempo, da riqueza da serenidade, das pequenas coisas, do isolamento, desse modo de vida, com tanto Rio-Mar a sufocar ou a ser vida das gentes de uma imensa e tanta Amazónia)
Sabe-se pouco porque é que vivias assim, longe de todos, como se o mundo não te interessasse. Interessava? Se mais gente soubesse da tua importância, tinhas razão, não te deixaria lá ficar, sozinho, a sofrer as dores da idade, e sem poderes contar sobre as rugas que o tempo te trouxera, ano após ano. Querias contar? Porque foste para lá? Sei que ninguém sabe, e que, se soubessem, não te deixariam em paz. Iriam querer ouvir as tuas histórias: as do único morador da Bolívia, no Alto Amazonas, num remoto Brasil.
Falavam tanto de ti “rio abaixo”. Tu, lá sozinho, perto do rio, no teu casulo de madeira, tecido com as tuas mãos – já nem te lembravas há quantos Verões. Ninguém acredita, se o contar, que os teus vizinhos mais próximos ficavam a um dia de viagem, de lancha. Muitos que te visitavam tinham de esperar horas (quem sabe dias) para te encontrar. Talvez fosse melhor assim, para que não te chateassem.
Não querias saber de mais nada, já que o teu mundo era mais perto e intenso que este de onde te escrevo. Dizem que aí o rio é como sangue do parentesco: une os ribeirinhos numa só família. Contaram-me que só querias saber das cheias e secas. Quando vinham, já sabias se haveria peixe ou quando devias pôr a espingarda às costas e ficar horas na selva para garantir os comes dos próximos dias.
Ninguém acredita que, em pleno século XXI vivias sem frigorífico, sem luz, sem cama, sem fogão a gás, sem nada que este nosso mundo acelerado já não dispensa, sem médicos por perto para te amparar quando sentisses dor, e que até essa atenuavas, com os saberes da selva, a “tua amiga”. E agora foste, há meses, já velhinho, porque quando sentiste dor ninguém estava lá para te dizer o que era.
A selva também achou que era melhor dar-te descanso das mezinhas que sabiamente colectavas. Afinal, já a conhecias demasiado, e ela precisa guardar determinados segredos, não vá o mundo, aquele que não quiseste conhecer, de onde te escrevo, invadi-la para a devastar, como andam a fazer mais perto da cidade, em toda a Amazónia, a dias de distância de ti.
E, Sabá: é verdade o que se conta? Que nos últimos anos de vida tinhas alguém para te enxugar as lágrimas (choravas?) e para te embalar a rede quando sonhavas (o que imaginavas?). Que havia uma mulher, a “Cigana” que ninguém via? O povo, “rio abaixo” conta que não estavas “muito bom da cabeça”. E que a “Cigana” não existia; que foi uma invenção da (senil) idade que a solidão te trouxe por não aguentares tanto silêncio.
Sabá, eu sei que achavas que ninguém ia contar a tua história. E que ela, afinal, não é assim tão importante, como talvez achasses. Também sei que nunca saberás que a soube por acaso, já depois de teres morrido, e que a resolvi contar para que saibam que jeito é esse de morar na Amazónia, isolado, sozinho. Só que o meu mundo, esse acelerado, perdoa-me, quer saber de ti, para não se esquecer da importância do teu mundo.
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