Amazónia temperada a ervas milagrosas

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

mercado

(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)

Vende-se rapé ao lado da barraca do Nildo. O cupuaçu custa dois reais o quilo. A senhora de meia-idade tira a castanha-do-pará da casca dura com um canivete para as ensacar às dúzias. E, no final da feira, na esquina do emblemático mercado Ver-o-Peso, em Belém, no Brasil, o maior a céu aberto da cidade, as centenas de garrafas com líquidos coloridos e mezinhas que Deusa Silva prepara com ervas “milagrosas” prometem curar todos os males.

“Vem cá, meu amor, tenho o remedinho que você precisa.” Viagra natural para tomar três colheres por dia, “preparo para engravidar”, tónico contra queda de cabelo, banho de descarrego “para espantar os maus espíritos” e “Atractivo do Amor”.

Deusa sabe como se atrai: “Agarradinho, carrapatinho, chega-te a mim, chora nos meus pés, busca longe, corre atrás, vai-e-volta e atractivo, quem tem alguma coisa volta de novo da perseguida: isso são as ervas que colocamos aqui, não tem segredo nenhum”, diz a erveira, que se levanta todos os dias às 05.00 e tirou um curso de inglês para “poder falar com os turistas”. “Estou quase a ir embora, daqui a pouco acaba o sol.”

Nildo Sousa ainda fica mais um pouco. Prepara há 30 anos, com a sabedoria que o pai lhe passou, as ervas que vende no Ver-o-Peso, que deve o nome a “Casa do Haver-o-Peso”, criada pelos portugueses como posto de controlo alfandegário no século XVII.

E se as ervas são o atractivo mais famoso, o cheiro a peixe, carne, verduras e temperos amazónicos entranham-se na roupa para lembrar que também dali querem sair para outras casas.

O mercado fervilha, centenas acotovelam-se, se fosse de manhã cedo os cheiros seriam de milhares de gentes.

Pôr-do-Sol a Ver-o-Peso em Belém

Postado por Vanessa Rodriguesem 24 de Agosto de 2009

mercado

(Publicado no Diário de Notícias a 23 de Agosto 2009)

Não chove há duas semanas. Há qualquer coisa de vento pegajoso que se cola à pele, antes de a humidade se entranhar no corpo, nos olhos, no cabelo, até o suor deslizar abundante, sem secar. Depois, há qualquer coisa de verde espesso que se vê ao longe, assim sentada no Forte do Castelo, onde nasceu Belém, a do Brasil português, recortado por espaços de luz, que parecem portas sulcadas na vegetação, e por onde o rio Amazonas, cor-baço-barrento, respira de alívio, dispersando-se no delta, engolfando-se em outras águas fluviais, depois de milhares de quilómetros a perder-se em leitos lentos e caudais sinuosos.

Não se estranha, por isso, que quando ele também aqui chega, fraco, quer seja porta de entrada para a Amazónia profunda quer seja rio a desaguar na foz, antes de encontrar o Atlântico, leia poros de pele, para se agarrar a nós de gente que são mundo desta Cidade Morena, de mesclas de peles, feita de seduções forçadas há quase quatro séculos, entre portugueses e os índios Tupimunbá.

E, agora, só os abutres negros planam sobre a baía do Guajará, ao fim da tarde, sob o porto de Belém, à procura do cheiro acre de peixe, depois dos restos de pesca nos barcos ancorados, precários, numa dor de cabeça para a fiscalização, enquanto os botos-cinza ali na água, parentes dos golfinhos, vêm à tona para respirar.

O barco de ronda da polícia militar rasou-os. O caboclo que lava o corpo já não os viu, mergulhou e nadou até ao barco Jesus de Nazaré. A espanhola de visita não sabe o que são, e pergunta ao Ricardo, que guarda o forte, a olhar o mercado Ver-o-Peso, até o Sol se pôr, todos os dias. E, ao longe, esse sol, já desce o horizonte dourando as águas barrentas, enchendo-se de laranja-cor. Ricardo diz que o sabe imaginar fielmente se fechar os olhos, e que a pior altura para o admirar é no Círio de Nazaré, que a cidade anda a preparar para daqui a oito semanas, quando a maior festa religiosa de Belém enche as ruas de incenso, barracas com frituras e churrascos improvisados, numa traição consentida aos sabores e cheiros que a fazem amazónica.

Durante o ano ela é português reinventado na gastronomia, nos frutos, na língua, como a raça de mil raças daqui: tapioca, cupuaçu, buriti, açaí, bucuri, priprioca, andiroba, graviola, tacacá, tucupi, maniçoba. Quantas linguagens dentro da linguagem? Quantos gingados de pronúncias tem o português?

O Henrique Valente não sabe. Ele que já mistura o de Portugal com o do Brasil há 40 anos. E já chega: vai voltar a Portugal assim que vender a fazenda em Macapá, no estado amazónico do Amapá, a 24 horas de barco daqui. Não é mais a Belém que conheceu. A de hoje é violenta. Cresceu desmesuradamente. Tem mais de um milhão de habitantes e os tentáculos urbanos fizeram brotar arranha- -céus, ao lado de casarões coloniais e praças planeadas pelos senhores da “Lusitânia Feliz”, quando aqui chegaram.

O progresso crava problemas sanitários de águas de lodo ressequido nos passeios, insegurança, prostituição infantil e tráfico de mulheres para a Europa e países da fronteira amazónica, sobretudo a Guiana Francesa.

Andy Vale conhece os meandros. Ela que quase morreu afogada no Amazonas, depois de o barco em que seguia se ter afundado, em 2001. Esteve dezasseis horas presa pelo cabelo a galhos num ribeiro, até ser resgatada pela Marinha brasileira.

Embarcações precárias são “normais”. Negócios duvidosos também, e que o vasto caudal amazónico esconde, entre hidrovias e redutos de emaranhado de selva, sem pôr do Sol. E o que se perde no horizonte agora já não vê o “Peso”.

É meio círculo velado entre nuvens baças em despedida lenta: laranja fluorescente forte, recortado, como quem diz que amanhã, afinal, também não chove.

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